Uma leve bagagem cultural

D. Pedro I não era exatamente brilhante, mas estava longe do estereótipo de ignorante, degenerado e doente que lhe coube D. Pedro compartilhava com outros membros da casa de Bragança o amor pela música. 'Os primeiros sons do Hino da Independência', óleo de Augusto Bracet, documenta essa paixão Eneida e música. A paixão pelo clássico de Virgílio e a verdadeira adoração pela composição e pelo som dos instrumentos são os itens mais vistosos de um imaginário perfil cultural de D. Pedro I. Mas o imperador, diga-se de passagem, nunca foi lembrado pela educação esmerada e, muito menos, por qualquer relação com as artes. Ao contrário: a memória coletiva acentua a profusão de amantes [Ver RHBN nº 64], a ignorância e os ataques epiléticos. Mas não é bem assim. O único traço de afinidade com o mundo artístico que começa a ser conhecido é o que ele compartilha com outros membros da casa de Bragança: o amor pela música. A educação do primeiro imperador do Brasil, no entanto, não foi tão inexpressiva quanto se acredita. E muito de seu gosto pelas artes foi incentivado pela imperatriz, D. Leopoldina. Filho de pais em litígio permanente, Pedro cresceu com D. João e D. Carlota Joaquina vivendo em palácios diferentes. Por isso, ele e seus irmãos tiveram mais contato com a nobreza da corte destacada para acompanhar seu crescimento do que com familiares. Sua educação pode ter sido falha, mas esteve longe de ser nula, como se costuma afirmar. O príncipe era o segundo filho homem, precedido por D. Antônio, que morrera na primeira infância, confirmando a mítica maldição lançada aos Bragança por um frade franciscano: jamais um primogênito varão daquela dinastia viveria o bastante para chegar ao trono. Biblioteca como herança do mestre Agora herdeiro, D. Pedro, aos cinco anos, já teve seu primeiro mestre de letras. Entre altas recomendações e algumas incertezas, o escolhido foi o Dr. José Monteiro da Rocha. Pesou o fato de já ter 70 anos de idade, mas ainda assim, ele foi seu professor até a mudança para o Brasil, em 1808, quando o príncipe ainda não tinha dez anos. Ao morrer, em 1819, o mestre, muito apegado ao pupilo, deixou-lhe como herança sua biblioteca. D. Pedro teve ainda outros mestres, sempre ligados à vida eclesiástica, como o frei Antônio da Nossa Senhora de Salete, que lhe ensinou latim e o apresentou às obras do poeta romano Virgílio (70-19 a.C). Seriam seus professores até a vida adultaos padres Guilherme Paulo Tilbury e João Joyce, que o versaram no inglês, e o cônego René Pierre Boiret, no francês.Este último idioma, o príncipe aperfeiçoaria consideravelmente junto a D. Leopoldina, sua esposa austríaca, que o tornou fluente. Na travessia do Atlântico, sem demonstrar medo ou inquietude, o pequeno D. Pedro passava os dias em meio aos oficiais, atento às manobras. Ou ocupava suas horas lendo, entre outras obras, a sua favorita: Eneida, de Virgílio, poema épico que narra as peripécias de Eneias, que sai de Troia e, após vagar pelo Mediterrâneo, chega à Itália, dando origem aos romanos. Desde menino, este era um de seus autores prediletos, que ele citou em diversas falas públicas. E este apego aos escritos clássicos não se deve apenas ao seu primeiro professor, mas a um mestre que seria também seu confessor, frei Antônio de Arrábida. Nas horas em que não estava percorrendo a embarcação, seu mestre e sua aia procuravam ocupá-lo com os estudos. Sua personalidade foi então se formando de maneira semelhante à da viagem que o trouxe ao Brasil; distante da mãe, nem tão próximo do pai, dividido entre o que lhe aguçava o interesse e a curiosidade, e os estudos. Normalmente, estes ficavam em segundo plano nessa educação sem diretrizes seguras, um tanto frouxa. Seu pai, D. João, também foi o segundo filho numa época em que o preparo do herdeiro do trono diferia do que era dados aos demais. Por isso não teve a mesma instrução de seu irmão mais velho, D. José. E talvez por isso não tenha se preocupado em proporcioná-la a Pedro, negando-lhe, inclusive, acesso aos negócios e segredos de Estado. Ainda que precisasse ser educado para reinar, D. Pedro amadurecera ao sabor dos acontecimentos, aprendendo sobre os negócios políticos, em grande medida, pela vida e pelo instinto. Nunca, porém, relegado à ignorância. Curiosidade, avidez e impaciência Com essa instrução pouco formal, o temperamento forte prevaleceu. Desde menino, ardia de curiosidade, avidez e impaciência extremas. A despeito das notórias falhas de caráter, como a queda pelas mulheres alheias, o tratamento bruto dispensado a D. Leopoldina e a informalidade com que exercia a política, sua natureza era rica e seus interesses, amplos. A música foi um dos mais fervorosos, considerado por muitos um dom natural do príncipe. Ainda que não tenha cultivado seu estudo, viveu cercado por ela. Tocava quase todos os instrumentos, cantava e compunha. O Hino da Independência é de sua autoria. Na noite seguinte à chegada da arquiduquesa D. Leopoldina ao Brasil, em 6 de dezembro de 1817, houve serenata nos salões da Quinta da Boa Vista, residência da família real, parte da celebração do casamento. D. Pedro e suas irmãs, D. Maria Teresa e D. Isabel Maria, cantaram árias de ópera, a que se seguiu a apresentação do drama “AugúriodeFelicitá”, de Marcos Portugal (1762-1830), compositor clássico, um dos mais famosos de todos os tempos em Portugal. O tema principal da obra era o amor entre o soberano augusto e sua augusta consorte, exaltando ao mesmo tempo a noiva, os monarcas e o povo do Império lusitano. O casamento com a arquiduquesa da Áustria enriqueceu a formação intelectual de D. Pedro. A educação de D. Leopoldina, típica dos Habsburgo, uma das mais importantes famílias reais da Europa desde a Idade Média, era mais elaborada e rigorosa que a do marido. Os mestres vienenses proporcionaram melhor formação, e ela se dedicou ao estudo das ciências naturais e de idiomas. Ensinou a D. Pedro algo do alemão. O mundo jamais vira uma princesa europeia cruzar os mares para desposar um monarca em solo americano, especialmente uma que se envolveria no campo político e na independência de um país. Sua comitiva era integrada por médicos, zoólogos, botânicos e músicos. Alguns autores gostam de afirmar que enviaram a D. Pedro uma universitária no lugar de esposa. Aqui, ela procurou desenvolver seus estudos musicais ao saber do amor dos Bragança por tal arte, que se tornaria uma das atividades que mais aproximaram o casal. D. Leopoldina escrevia ao pai, Francisco I da Áustria, a quem enviava composições de Sigismund von Neukomm (1778-1858), compositor e pianista austríaco, seu professor, de D. Pedro e de suas irmãs. D. Pedro compôs uma sinfonia, uma missa e um Te Deum para o sogro. Nas cartas da imperatriz, eram fartas as encomendas de livros, entre eles Princípios de Economia Política (1820), de Thomas Malthus, coleções de clássicos latinos, obras de História Natural, obras de música e os três volumes dos Documentos históricos e reflexões sobre o governo da Holanda (1820), de Luís Bonaparte. Nunca será possível afirmar que D. Pedro I era um amante dos livros. A imagem caricatural de semianalfabeto tampouco lhe cai bem. Sua visão de mundo se sustentava nas leituras, na vivência e na influência dos mestres e da esposa. Fã de Napoleão D. Pedro era fascinado pela grandeza de Napoleão Bonaparte e tornara-se amigo de um de seus generais, Dirk van Hogendorp, acolhido no Brasil, onde viveu até a morte. O príncipe visitava-o com regularidade e, aparentemente, lhe concedia algum auxílio. Eram caros ao príncipe certos preceitos revolucionários, advindos principalmente de escritos franceses, e uma ordem política não exatamente liberal, mas que se distanciava dos ideais absolutistas. D. Leopoldina, em cartas a seu pai, admitira com alguma reticência que o marido flertava com a liberdade e com novas ideias. Francisco I fora deposto por Napoleão em 1806 e a Áustria era um dos membros da Santa Aliança, responsável por restaurar o absolutismo após a derrocada de Bonaparte, em 1815. Ainda há muito para se descobrir acerca dos escritos do príncipe e imperador.Em suas cartas, há exemplos da seriedade do político, da informalidade com alguns íntimos e do amante ardente. Porém, a expressão maior de sua ligação com as letras não é constituída pelas epístolas, mas por sua presença nos periódicos da época. Cartas eram enviadas a jornais sob pseudônimos como “Sacristão de S. João de Itaboraí”, “Piolho Viajante”, “Duende”, “Ultra-brasileiro” e “O inimigo dos Marotos”. Esses pseudônimos permitiam-lhe retrucar publicamente as acusações feitas a ele e a seu governo, e defender seus pontos de vista. Escritos por ele mesmo ou pelo controverso secretário Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, os artigos e cartas enviados atacavam jornalistas e políticos. Ainda que sob a proteção de nomes sarcásticos, o imperador valeu-se da imprensa, buscando utilizar as letras a seu favor. Os vestígios históricos de seu amor pela música e do contato que tivera com o mundo dos escritos e impressos não deixam dúvida quanto ao envolvimento de D. Pedro com as letras e artes. Não seria possível atribuir o título de semianalfabeto a um príncipe que lera Benjamin Constant, Edmund Burke e Voltaire, nomes centrais da filosofia política entre os séculos XVIII e XIX. Sobre seu comportamento como marido e amante, foi um pai afetuoso com os filhos, legítimos ou não. Um brutamontes jamais teria exclamado, ao mostrar o filho, o pequeno D. Pedro II, ao visconde de Barbacena: “Eu e o mano Miguel havemos de ser os últimos malcriados da família”. Ana Carolina Delmas é autora da dissertação “Do mais fiel e humilde vassalo: uma análise das dedicatórias impressas no Brasil joanino” (Uerj, 2008) e de “Elogios Impressos: dedicatórias no Brasil de D. João VI”, in Livros e Impressos: retratos do setecentos e do oitocentos (Eduerj, 2009). (http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/uma-leve-bagagem-cultural-1 último acesso em 27/08/2012)

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