A origem de uma megalópole : o surgimento de São Paulo permitiu a descoberta das preciosas minas e arrasou com os índios da região.

Amilcar Torrão Filho Quem percorre o estado mais desenvolvido do país de carro passa por rodovias como Anhanguera, Fernão Dias, Raposo Tavares e Anchieta, que lembram os bandeirantes e os catequizadores que se espalharam pelo Brasil adentro. As vias podem até homenagear os colonos “desbravadores”, mas elas foram abertas pelos nativos enquanto desbravavam o sertão. Não é à toa que essas mesmas estradas passam por Itu, Ituverava, Itapetininga, Itapeva, Indaiatuba, Guarulhos, Araçatuba, Jandira, Guaratinguetá, Peruíbe e Ubatuba, cidades que guardam em seus nomes a lembrança de nações indígenas que não vivem mais nessas regiões. Tudo teve início com a fundação, pelo mítico João Ramalho (1493?-1580), da Vila de Santo André da Borda do Campo, a primeira povoação criada pelos portugueses no interior da Colônia, em 1553. No ano seguinte, os jesuítas fundaram um aldeamento nas proximidades – com um colégio que congregava os índios da região para a catequese –, em uma colina de Piratininga. Em 1560 – incentivados pelos franceses que haviam se instalado na Baía de Guanabara e queriam ampliar seus domínios –, os índios carijós começaram a atacar Santo André. Devido à imensa dificuldade em resistir a essa ofensiva, o governo-geral ordenou a transferência, no dia 5 de abril, de toda a população da vila para o aldeamento de Piratininga, que ocupava uma área bem mais segura. Nesse mesmo dia, o povoado foi alçado à categoria de Vila de São Paulo – data que também pode ser considerada a mais adequada para se celebrar a fundação da cidade homônima. Com um colégio, um Pelourinho e uma Casa da Câmara e Cadeia, esse núcleo urbano recém-fundado inaugurava uma nova fase na colonização do Brasil. Até então, todas as vilas e cidades da Colônia estavam estabelecidas no litoral, pois os portugueses evitavam entrar no sertão e chegavam até a coibir os que tinham a intenção de fazê-lo. O franciscano frei Vicente do Salvador (1564-1635), que escreveu a primeira obra com o título História do Brasil, em 1627, afirmava que, embora fossem grandes conquistadores, os portugueses se contentavam em “arranhar as terras ao longo do mar feito caranguejos” na América. Os jesuítas, desde sempre, sentiam a necessidade de uma aproximação com os índios, por isso se estabeleceram no planalto. Eles queriam criar um povoado com nativos mais fáceis de serem convertidos, e que fosse suficientemente próspero para atrair bons colonos cristãos. Em mensagem a D. João III (1502-1557), Manuel da Nóbrega (1517-1570), primeiro líder dos jesuítas no Brasil, relatou que havia decidido se fixar na região de Piratininga por se tratar de uma “terra mais aparelhada para a conversão do gentio que nenhuma das outras, porque nunca tiveram guerra com os cristãos”. O fato de os índios do alto da serra terem abandonado o hábito de comer carne humana, ao contrário dos que viviam no litoral, também facilitava essa integração. Mas como entender o desejo que os jesuítas tinham de se fixar em Piratininga, tão próximos de João Ramalho, que era seu inimigo declarado? Ramalho era um português que já vivia na região de Piratininga, casado com uma mulher índia e com vários filhos mamelucos, quando os portugueses criaram a Capitania de São Vicente e a aldeia de São Paulo. Era visto como inimigo pelos jesuítas porque disputava com eles a autoridade sobre os índios, os direitos dos portugueses de utilizarem seu trabalho em proveito próprio. No campo, os religiosos poderiam educar os índios na fé católica sem grandes interferências dos colonos, que supostamente davam um mau exemplo aos nativos que estavam sendo catequizados. Eles bebiam, não respeitavam os mandamentos da Igreja e, sobretudo, nem o direito dos padres de catequizar os indígenas sem interferência dos colonos. Mais do que isso, a transferência do Pelourinho – o maior símbolo de autoridade de Santo André – para São Paulo permitiria, na visão dos jesuítas, que os padres também convertessem e catequizassem os próprios portugueses da América, que, isolados da verdadeira fé, podiam ser mais bem controlados. Apesar das dificuldades geográficas da serra, os campos férteis do planalto ofereciam condições melhores para o povoamento, característica que estava implícita no nome da localidade: Piratininga, em tupi, quer dizer “peixe seco” ou “lugar onde seca o peixe”. O local, portanto, era assim conhecido porque os peixes, depois das cheias dos rios, morriam e ficavam secando nas inúmeras várzeas e nos vales da cidade, até hoje sujeitos a enchentes. O padre José de Anchieta (1534-1597) dizia que os peixes eram tão abundantes, que na época da desova era possível apanhá-los com pequenas redes, ou até mesmo com as mãos. Comparado com outras trilhas, o caminho de subida para o planalto era dos mais fáceis. Por estar no alto de uma colina e ser acessível somente por uma face da montanha, a região era um local muito seguro e cheio de defesas. Os rios – como o Tietê –, além de servirem como fonte inesgotável de alimentos, foram usados como vias fluviais por onde seguiram diversas expedições sertão adentro. Para fazer o trabalho pesado nessas incursões, foi necessário aproveitar os índios, pois, como São Paulo estava numa região distante, era mais difícil – e mais caro – conseguir escravos africanos. A estratégia da penetração pelo sertão, muito aproveitada pelos colonos de São Paulo, nasce na prática da conversão jesuíta. Embora por razões opostas, tanto as tímidas incursões dos jesuítas – não se embrenhando muito além da vila – como as bandeiras dos colonos tinham um mesmo objetivo: o índio. O conflito entre padres e colonos era pelo controle da sua mão de obra e dos aldeamentos que protegiam o entorno da vila e forneciam força de trabalho para obras públicas e particulares. O nativo deveria ser convertido à religião de Cristo, mas também em força de trabalho e em lucros. Os religiosos, imbuídos do espírito da Contrarreforma – que tinha a função de converter o gentio à “verdadeira fé” –, vinham, da sua maneira, ocupando aquele território para a Coroa portuguesa. Em forma de triângulo, com os mosteiros de São Bento, São Francisco e do Carmo em seus vértices, e o colégio jesuíta no centro, São Paulo de Piratininga seguia o traçado das cidades barrocas, cujas vias levavam diretamente aos santuários, encurtando o caminho dos peregrinos. Nas cidades da Europa, a valorização dos edifícios religiosos era obtida por meio da monumentalidade de seus templos. Já em São Paulo, onde isso não era possível, conseguia-se efeito similar colocando-os em locais altos – ao alcance da vista de quem estava longe –, nos vértices das poucas ruas retas da cidade. A localização dos mosteiros das ordens no planalto obedecia a uma rigorosa hierarquia, já que a distância entre eles era delimitada. Esses espaços eram tidos como “áreas de privilégio”, onde nenhuma outra ordem poderia se estabelecer. Embora tivessem sido erguidos em épocas diferentes, os conventos do triângulo piratiningano obedeciam a essa regra. Os franciscanos, por exemplo, para ficarem mais distantes dos jesuítas, chegaram a se mudar da atual Igreja de Santo Antônio, na Praça do Patriarca, para a escarpa sul da vila, atual Largo de São Francisco. Os jesuítas tiveram o privilégio de se colocar no centro do triângulo não só por causa de sua ação evangelizadora, mas por terem sido os fundadores da cidade e se estabelecido antes dos outros. Além de garantir o avanço da catequese da Igreja, a fundação de São Paulo ajudou as conquistas portuguesas a irem além da descoberta das minas de pedras e metais preciosos no interior. Por outro lado, o surgimento da vila que deu origem ao maior polo industrial do Brasil também deu início a um processo que culminou no desaparecimento de grande parte da cultura indígena. Mesmo ela tendo sido incorporada aos nomes de várias cidades, ao conhecimento sobre as ervas e à miscigenação com os portugueses. Grande parte dos descendentes daqueles que estavam no Brasil antes do descobrimento sucumbiu às guerras, às doenças, à escravidão e à violência que normalmente acompanham as conquistas. Amilcar Torrão Filho é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor de Paradigma do caos ou cidade da conversão? São Paulo na administração do Morgado de Mateus (1756-1775) (Annablume/Fapesp, 2007). http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/último acesso em 8/11/2011

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