A preguiça é paulista

RHBN 01/07/2009
A preguiça é paulista
Novo governador se surpreende com a miséria e a depravação da capitania de São Paulo. Os habitantes não queriam saber de trabalho
Lílian Lisboa Miranda

A capitania estava “morta”. Esta foi a dura constatação de D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão (1722-1798) ao aportar em São Paulo. Recém-nomeado governador, ele encontrou uma terra arrasada, sem produção, cujo povo andava metido pelas matas, “sem lei e sem fé”, como “feras”. Culpa da preguiça quase doentia que acometia todos os habitantes. Aquela gente parecia inconciliável com o trabalho.

Havia tempo que o território paulista passava por franca decadência econômica e política. As principais riquezas vinham das Minas Gerais, e seu caminho natural de escoamento era o litoral carioca. São Paulo chegou a perder seu status de capitania, incorporado aos domínios administrativos do Rio de Janeiro. Mas a crise que se abateu sobre Portugal em meados do século XVIII, com o declínio das remessas de ouro e diamantes, levou o governo a impor uma nova política para a Colônia. Uma das providências foi recriar a capitania de São Paulo e investir em sua produção. Diante do povo que se encontrava ali, seria um trabalho árduo.

Para comandar o processo, o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (futuro marquês de Pombal) nomeou o fidalgo D. Luís Antônio. Homem de vários títulos, entre eles o de morgado de Mateus – honraria hereditária ligada à posse de um território –, era militar de carreira e vinha de uma família de varões que tradicionalmente serviam em várias áreas da administração do Estado.

Logo na chegada ao Rio de Janeiro, em 1765, o português entusiasmou-se com a riqueza da Colônia e seu potencial econômico. De São Paulo, no entanto, sua primeira impressão foi a pior possível. Era uma terra “depravada nos costumes”. Em carta ao primeiro-ministro, afirmou que parte da culpa pelo lastimável estado em que se encontrava a capitania era de seus próprios habitantes, que viviam “sem sujeição ou civilidade alguma”. Muitos eram assassinos, e as “parcialidades, os roubos, a falta de justiça” eram comuns.

Os vadios, como eram denominados os homens livres pobres, sentiam verdadeira repugnância pelo trabalho agrícola. Viviam de pequenas roças de subsistência, e para complementar a dieta, saíam para as matas, caçando animais e coletando vegetais. O hábito de se alimentarem de “bichos imundos e coisas asquerosas”, além de comprovar o caráter incivilizado daqueles homens, preocupava o novo governador por outros motivos. Esta seria a origem dos numerosos casos do chamado mal de Lázaro (a hanseníase) entre a população. Além disso, a improdutividade precisava ser combatida pelo bem da economia: faltavam até gêneros alimentícios na capitania, e quase não havia produção agrícola para exportação. Incentivar a cultura de cana-de-açúcar era uma prioridade para a Coroa. Mas, para isso, era preciso dar um jeito na índole daquela gente, que passava a maior parte do tempo sem fazer nada – “de noite e de dia estão deitados ou balançando na rede, ou cachimbando”.

Para as autoridades portuguesas, o caráter deturpado dos colonos tinha uma causa: eram os malefícios dos ares da América. Se no início do processo de colonização eles chegaram a ser louvados como saudáveis, com o tempo adquiriram a fama de corruptores do caráter e da boa condição física e mental dos habitantes. Isso explica por que o mal da preguiça não era privilégio dos homens nascidos na Colônia: contagiava também os portugueses que passavam a habitá-la. Indivíduos recém-chegados às terras paulistas em pouco tempo tornavam-se displicentes e não queriam, de modo algum, empregar-se em atividades produtivas. Empenhavam-se, sim, em virar senhores, comprando escravos e vivendo da exploração de seu trabalho. Diante desse risco de “contaminação”, D. Luís Antônio chega a questionar a conveniência da vinda de mais portugueses para a América.

O desejo de assumir o papel de senhor, delegando o trabalho a outros, não tinha distinção social. Mesmo homens pobres, assim que possível, tratavam de adquirir ao menos um ou dois escravos para o trabalho nos campos. Os livres não queriam ser confundidos com cativos, e a forma de se diferenciarem era manter as mãos limpas, longe da terra. Já os portugueses que chegavam, vindos de uma sociedade dividida por critérios de nobreza, encontravam na Colônia a oportunidade de “dar-se ares de fidalgo”. O que significava viver de pernas para o ar.

O governador costumava ter o cuidado de não se indispor com a elite local. Suas críticas se direcionavam principalmente à gente de menor condição. Os “filhos do reino possuidores de casas de negócio, fazendas ou lavras estabelecidas”, assim como os fidalgos paulistas, mereciam sua consideração: eram “industriosos” e donos de civilidade. Mas, às vezes, os costumes dos mais abastados também o incomodavam. Entre eles, o luxo excessivo das vestimentas e dos calçados, impróprios para o clima tropical. Nas ruas da capitania, que não eram pavimentadas, esse exagero no trajar causava grandes dificuldades para a locomoção. Pompa e requintes desnecessários também se viam na alimentação: um excesso de produtos importados do reino, que, a depender dele, deveriam ser substituídos por gêneros nativos.

A Colônia portuguesa parecia desconhecer os avanços que a Europa fizera no campo da agricultura. As técnicas de plantio utilizadas pelos paulistas eram atrasadas e precárias. Lavrava-se a terra de forma extensiva e itinerante: depois de poucas colheitas, o solo se exauria e a produtividade caía. O jeito era sair em busca de outra área em que pudessem repetir o processo. Para melhorar a produtividade, tudo o que sabiam fazer era promover queimadas de áreas florestais. A erosão e o empobrecimento do solo devastavam a capitania, o que reduzia a atividade agrícola à mediocridade, levando São Paulo à ruína e, para seu profundo pesar, impedindo o reino de se recuperar economicamente. D. Luís Antônio bem que tentou introduzir a tecnologia do arado entre os agricultores locais. Em vão: eram gentes indolentes, presas de grande teimosia e de uma absoluta falta de iniciativa.

Para completar o quadro desesperançado, os selvagens paulistas viviam distantes da religião. Como “onde falta Deus (...) não pode haver coisa boa”, nas palavras do morgado, a difícil missão de transformar aquele povo passava por todo um novo ordenamento social. Foi isso o que propôs, em forma de legislação. A Lei dos Sítios Volantes, de 1766, previa a fundação de novas vilas e pequenas comunidades, para onde deveriam ir os “vadios, facinorosos e bastardos”, acompanhados de suas famílias. Essas “povoações civis”, com pelo menos 50 habitações, iriam formar uma rede e tornar-se um poderoso instrumento para reunir a população dispersa, instaurando a ordem, a obediência, o exercício do serviço religioso e a prática de uma agricultura mais racional. Também facilitariam o recrutamento militar, elemento essencial para a defesa do território português e a garantia da posse de áreas de contestação de fronteiras com a Coroa espanhola.

Assim foram fundadas as vilas de São Luiz do Paraitinga (SP), São Luiz da Marinha de Guaratuba (atual Guaratuba, PR), São José de Moji-Mirim (atual Mogi-Mirim, SP), São José da Paraíba, (atual São José dos Campos, SP) e Prazeres de Lages (atual Lages, SC).

Em defesa do governador, vale lembrar que ele não foi o único a julgar os paulistas de forma tão negativa. Muitos dos administradores que estiveram na América acreditaram que o grande problema da Colônia era o povo. Terra de mamelucos, índios e mestiços, São Paulo sempre foi considerada quase selvagem aos olhos da Coroa. Gente traiçoeira e indigna de confiança, os paulistas deveriam ser constantemente vigiados. Os naturais da terra, por não praticarem a agricultura com fins mercantis, foram tachados de ociosos e vagabundos.

Mas os “selvagens” bem que serviram aos interesses do reino. Não chegaram a ser completamente dominados, mas foram muitas vezes disputados por sua incrível capacidade de aturar os trabalhos mais duros e ásperos. Transformaram-se em povoadores de rincões distantes, abriram estradas, consertaram pontes e caminhos e impediram a penetração espanhola em áreas fronteiriças. Coisas que preguiçoso nenhum faria.

Lílian Lisboa Miranda é professora do Centro Universitário Fundação Santo André e autora, com Patrícia Albano Maia, de São Paulo Colonial: sua gente e seus costumes (Atual Editora, 2006).

Saiba Mais - Bibliografia:

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil Colonial: o Governo do Morgado de Mateus em São Paulo. São Paulo: Editora Alameda, 2007.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,1994.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3ª ed. ampliada. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Preguiçosos ontem, trabalhadores hoje

Se o governador de São Paulo atribuía aos paulistas a pecha de preguiçosos, este título foi conferido, séculos depois, aos cariocas. A rivalidade entre os estados, que cresceu no século XX por razões políticas e econômicas, acabou por estimular algumas provocações entre seus habitantes. Foram criados rótulos para os dois lados: paulistas são trabalhadores e cariocas são ociosos.

A rivalidade, que entrou para o folclore nacional, rendeu pérolas, como as frases do pernambucano mais carioca de todos os tempos, Nelson Rodrigues: “O pior tipo de solidão é a companhia de um paulista”; ou esta, sobre os cariocas: “O carioca é um ser encantado. No Rio, dois sujeitos que nunca se viram tornam-se como que súbitos amigos de infância e caem nos braços um do outro, aos soluços”.

As provocações de ambos os lados têm um fundo comum: a ideia, difundida ao longo do século passado, de que os nascidos na Cidade Maravilhosa são naturalmente extrovertidos, dedicados ao ócio, à contemplação, à diversão, enquanto seus vizinhos da Terra da Garoa são pessoas sérias, introvertidas, dedicadas ao trabalho, são, enfim, a locomotiva do Brasil.

Não foi sem razão, portanto, o espanto causado por uma pesquisa do IBGE, de 2006, que apontava uma realidade contrária ao mito: os cariocas têm uma média semanal de trabalho de 41,6 horas, contra 41,3 dos paulistas. Ou seja, apesar da praia, da cervejinha no fim do dia e do futebol após o expediente, os cariocas trabalham mais.

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