De onde vem o termo queer, tema de mostra cancelada em Porto Alegre

Primeiros registros do uso do termo são do século 16. Mas significado da palavra foi subvertido com o tempo
('SAPPHO AND ERINNA IN A GARDEN AT MYTILENE', DE SIMEON SOLON, 1864, EM EXPOSIÇÃO NA MOSTRA 'QUEER BRITISH ART') Após protestos com a participação do MBL (Movimento Brasil Livre) e páginas de cunho religioso, o Banco Santander cancelou, no dia 10 de setembro, a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Ela havia entrado em cartaz um mês antes em Porto Alegre e não possuía classificação etária. A mostra contava com artistas brasileiros de diversas gerações, entre eles Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Ligia Clark, Leonilson e Adriana Varejão. Uma das obras mais criticadas é “Cenas do interior 2”, de Varejão. Trata-se de uma tela com quatro cenas de atos sexuais, incluindo sexo com um animal. Outra obra que foi alvo dos manifestantes é de Bia Leite, uma artista em início de carreira. Ela expôs desenhos baseados em frases e imagens do Tumblr Criança Viada, que reúne fotos enviadas por internautas de si mesmos na infância, no geral em poses afeminadas ou masculinizadas. O MBL e os religiosos dizem ter visto ali “pedofilia”. A artista afirmou que a intenção era promover o respeito a crianças que sofrem por não apresentar comportamento adequado a seu gênero. Representantes do Ministério Público foram até a mostra e afirmaram que não foi cometido nenhum crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Enquanto a Queermuseu é cancelada no Brasil, na Grã-Bretanha a galeria Tate Britain realiza até o dia 1º de outubro uma exposição dedicada exclusivamente à arte de teor “queer” do país. Intitulada Queer British Art, a mostra celebra cinco décadas de descriminalização parcial da homossexualidade masculina na Inglaterra. Ela reúne obras criadas entre 1861 e 1967, antes mesmo de o termo inglês “queer” passar a ser aplicado de forma generalizada não só para gays, mas para quaisquer indivíduos que não são heterossexuais ou cisgênero (que têm o sexo de acordo com o gênero). A Tate Britain afirma que, no período em que foram criadas, as obras expostas “ajudaram a forjar um senso de comunidade, quando as terminologias lésbica, gay, bissexual e trans não eram reconhecidas. Juntas elas mostram um marcante espectro de identidades e histórias, do lúdico ao político, e do erótico ao doméstico”. A galeria inglesa afirma que usou o termo “queer” no nome da mostra porque “embora tenhamos testado outros títulos, nenhuma outra opção captou completamente a diversidade de sexualidades e identidades de gênero que são representadas” e as sexualidades do passado “frequentemente não se conectam com as identidades sexuais modernas”. O desenvolvimento do termo queer como é aplicado hoje No artigo acadêmico “A Etimologia de Queer”, publicado em 2005 na revista acadêmica voltada à literatura inglesa American Notes and Queries, o professor de estudos medievais da Universidade de Cornell William Sayers relata usos antigos do termo “queer” no inglês e seus dialetos. Citando a definição do dicionário Oxford, uma referência em língua inglesa, ele afirma que a palavra denota em essência algo “estranho, peculiar, excêntrico em aparência e caráter”. “Também de caráter questionável, suspeito, dúbio.” Segundo Sayers, um dos primeiros registros do termo “queer” está no poema “The Flyting of Dunbar and Kennedy”, escrito por William Dunbar em dialeto escocês. Em um trecho, Dunbar descreve William Kennedy, seu opositor em uma espécie de disputa de poesias, sendo perseguido em Edimburgo por cachorros e meninos que o chamam pejorativamente de “queir”. Sayers também afirma que no dialeto irlandês medieval a palavra “cúar” tinha o sentido de algo encurvado ou torcido, sendo utilizada tanto para descrever características físicas humanas quanto topográficas, além de armas e ferramentas. “É possível especular que o termo tenha sido introduzido no inglês coloquial via marinheiros irlandeses empregados em navios ingleses, dados os vários usos específicos da navegação para ele”, diz o professor. Do xingamento à militância Segundo o dicionário Oxford, a partir do final do século 19 “queer” começou a ser utilizado também para se referir pejorativamente a homossexuais. “Quando utilizado por heterossexuais, ele era originalmente um termo agressivamente derrogatório”, diz o dicionário. De acordo com o mesmo dicionário, no final da década de 1980, parte da comunidade homossexual passou a adotar queer “em uma tentativa de, ao usar a palavra positivamente, desprovê-la de seu poder negativo”. Em um panfleto distribuído na parada gay de Nova York de 1990 intitulado “Queers, leiam isso”, uma eentidade chamada Queer Nation explicou por que acreditava que a palavra deveria ser adotada por gays e lésbicas. “[O termo] ‘gay’ é ótimo. Ele tem seu lugar. Mas muitas lésbicas e homens gays acordam de manhã se sentindo enojadas, não gays [que também significa alegre em inglês]. Por isso escolhemos nos chamar de queer. Usar queer é uma forma de nos lembrarmos como somos percebidos pelo resto do mundo” Trecho do panfleto ‘Queers leiam isso', publicado em 1990 pela Queer Nation Já naquele ano, queer vinha ganhando outras conotações, definindo não apenas homossexualidade, mas outros tipos de sexualidade, assim como identidades de gênero — o que não impediu que continuasse a ser utilizado pejorativamente em paralelo, como ocorre até hoje. Também em 1990 foram publicadas duas importantes obras que contribuiriam para a adoção desse uso mais amplo da palavra: "Gender Trouble", da filósofa Judith Butler, que ganhou versão em português como "Problemas de Gênero, e "Epistemology of the Closet", de Eve Kosofsky Sedgwick. Embora não discorram sobre o uso do termo “queer” como guarda-chuvas para minorias não heterossexuais e não cisgênero, as obras contribuíram para lançar as bases teóricas dessa ideia. O conceito acadêmico Em sua obra, Butler defende um tipo de feminismo que desafie os conceitos dominantes de gênero e identidade. Ela afirma que toda identidade de gênero, como a da mulher ou do homem, é um tipo de performance, que está aberta a modificações e multiplicidade. Sedgwick afirma que oposições binárias, como a de homem e mulher, ou heterossexual e homossexual são demasiadamente simplistas e não dão conta da diversidade de sexualidades e identidades. As autoras estão entre as pioneiras da “queer theory”, uma linha de pensamento que analisa atos sexuais e identidades no geral como algo múltiplo e culturalmente construído. A partir da década de 1990, ela passa a exercer influência no mundo todo, inclusive no Brasil, o que contribuiu para que o termo passasse a ser adotado também no país. Algumas das obras expostas na Queer British Art:
('LADY WITH A RED HAT', DE WILLIAM STRANG, 1918)
('THE CRITICS', DE HENRY SCOTT TUKE, 1927)
(BATHING', DE DUNCAN GRANT, 1911) (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/09/13/De-onde-vem-o-termo-queer-tema-de-mostra-cancelada-em-Porto-Alegre.Acesso em 17/09/2017)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Origem do Sacro Império Romano Germânico

RESOLUÇÃO

A escola dos Annales