Arte, política e prostituição

Em tempos de avanço do conservadorismo no Brasil e no mundo, exposições temporárias do Museu d’Orsay evidenciam o potencial político da arte. Está aberta ao público no Museu d’Orsay, em Paris, de 22 de setembro de 2015 a 15 de janeiro de 2016, mais uma exposição que está dando o que falar: “Esplendor e Miséria – imagens da prostituição, 1850-1910”.Divulgação Divulgação O Museu d’Orsay é uma das instituições mais tradicionais da dita “alta cultura francesa”, reunindo a mais importante coleção de pinturas impressionistas do mundo, além de obras ganhadoras das medalhas de ouro dos Salões do século XIX. Para a arte francesa, o d’Orsay faz parte de uma tríade linear histórica: Museu do Louvre, Museu d’Orsay e Centro Pompidou. Sua coleção permanente sempre atraiu o público aos milhares, como comprovam as longas filas de bilheteria, mas são as últimas exposições temporárias que têm causado maior rebuliço na mídia francesa. Entre o final de 2013 e o início de 2014, a exposição “Masculin-Masculin”, sobre o nu masculino, foi alvo de muitos narizes torcidos. Por que? Porque eram só homens. Séculos de homens, em mármore e em tinta. Paredes, corredores e salas de homens nus. Homofóbicos chiaram... É importante notar a oportunidade do momento, a coragem e o posicionamento político de toda a direção do museu em levar adiante essa exposição no ano de 2013: meses antes um radical de direita de 78 anos se matara com um tiro na boca, dentro da Catedral de Notre Dame, para revelar seu máximo protesto à aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo na França, e à contínua entrada de imigrantes no país. Não pense que ele foi o único a protestar. Milhares de pessoas saíram pelas ruas em Paris contra a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Era ali, enquanto os protestos reuniam milhares de pessoas em várias cidades do país, que o museu abria as portas de uma exposição para a qual muitos torceram o nariz por acreditarem ser “apologia gay” ou “ditadura gay”. A direção do museu não se importou e seguiu adiante. O presidente do Museu d’Orsay, Guy Cogeval, viu a primeira exposição dedicada integralmente ao nu masculino em 2012, no Museu Leopold, de Viena. E se perguntou: “por que nunca houve uma exposição de nus masculinos?” A nudez na arte é tão comum, tanto de nus femininos quanto masculinos... Por que seria, então, a reunião desses homens nus algo que chocaria tanto a sociedade? Por que houve tanta celeuma, tantas críticas ao Museu d’Orsay ter abraçado a ideia do Museu Leopold? Acredito que se trata, em menor ou maior grau, de homofobia: a reunião de homens nus nos remete ao universo gay, ao amor entre homens. E isso os conservadores não podiam aceitar dentro de uma das instituições mais consagradas da cultura francesa. Dito isto, cabe ainda mais alguns questionamentos: Seria igualmente mal vista a reunião de nus femininos? O nu feminino é mais aceitável e até esperável? Para além da homofobia, talvez estejamos diante do velho e conhecido machismo. O alvo da vez é a prostituição feminina. A prostituição, sempre mal vista pela sociedade de moral religiosa, não costuma ser considerada digna o bastante para tornar-se tema único de uma exposição grande em museu famoso. Sim, existem muitos museus do sexo e da prostituição, sobretudo em cidades liberais como Amsterdã, mas levar o tema a uma instituição tão consagrada e midiática é o que consiste a inovação dessa exposição.É por ela que podemos ver a representação da prostituição francesa nas artes plásticas, entre 1850 e 1910. A ambiguidade desse período é patente: enquanto a burguesia ascende e vai cada vez mais tolhendo o corpo e a sexualidade feminina, surge um vestuário sóbrio, sobretudo para o dia, porém extremamente sexualizado para as mulheres, espartilhadas e cheias de enchimentos em zonas erógenas ao olhar masculino. Época profundamente teatral e protocolar, de extremados pudores nos modos de falar e agir no mundo. Assim, a representação do tema nessa exposição inicia-se de forma sutil, como sutil podia aparecer na sociedade parisiense. Um dos primeiros quadros é de James Tissot, “A vendedora de loja” [1878], no qual vemos uma vendedora dentro do estabelecimento, abrindo a porta para o cliente sair. Embora apareçam duas vendedoras – essa de frente abrindo a porta e agradecendo pela compra – e outra de costas guardando uma caixa, bem próxima à vitrine, sendo observada por um homem na rua, elas são a mesma pessoa: esse jogo de imagem seria a ambivalência, a dúvida que se lançava a essas moças que trabalham fora? Que têm contato com tantos clientes? Que ficam passando para lá e para cá numa vitrine, para deleite de homens que fingem olhar as mercadorias? Seria ela vendedora, mas também poderia estar à venda? Sutilezas, dúvidas e ambiguidades. Na segunda metade do século XIX, as mulheres ditas “honestas”, outras que talvez ocasionalmente se prostituíssem, outras oficialmente registradas como prostitutas eram virtualmente indistinguíveis nas ruas e demais lugares públicos durante o dia. Enquanto o Sol brilhasse, a ambiguidade prevalecia, resultando numa dificuldade para estabelecer definições. As prostitutas se fundiam ao turbilhão das ruas e só eram reconhecidas por pequenos gestos e palavras que podiam indicar sua profissão. Uma saia levemente levantada para atravessar a rua, revelando a ponta das botas, seria uma indicação discreta a um passante, ou movimentação normal de uma mulher que utilizava o espaço público em tão pesadas e justas roupas? Uma mulher em trajes mais ousados era alguém que deixava clara a sua profissão relacionada ao sexo ou uma mulher que simplesmente gostava das mudanças da moda? Uma maquiagem mais marcada: chamar a atenção de possíveis clientes ou sentir-se bonita? Trabalhadoras que andavam sozinhas na rua: necessidades da vida ou oportunidade para encontrar clientes? Uma mulher que ousa olhar para os homens nas ruas e ocasionalmente sorri para eles: atitude ou prostituição? Essas identidades fluidas, intangíveis, fascinavam os artistas, que recriavam essa ambiguidade e mistério em seus quadros: como os pintores Giovanni Boldini e Jean Béraud. Percebemos que para além da prostituição mais óbvia, de mulheres que se expõem nas ruas durante a noite em busca de clientes, ou aquelas que fazem uso de bordéis e cabarés, a exibição do d’Orsay mostra que a atividade da venda de prazeres sexuais também podia ser muito mais discreta ou dúbia. Dessa forma, a narrativa expositiva prossegue abordando um tema delicado: os limites da prostituição. Onde e por que ela começa; onde e se ela termina. Questão de subsistência, para atender as necessidades mais básicas de mulheres pobres; ou prostituição como escolha, para atingir um padrão alto de vida, realizar sonhos. Não à toa o título, inspirado em obra de Honoré de Balzac, chama-se “Esplendor e Miséria”: esplendor da prostituição de alto luxo, e a miséria daquelas que se viam sem saída e vendiam prazeres para subsistir. Sobre as mais pobres, os textos e os quadros mostram como as trabalhadoras de rua – lavadeiras, vendedoras, entre outras – por vezes se prostituíam para complementar renda tão baixa, sobretudo se fossem arrimo de família. Nesse sentido, andar sozinha na rua podia ser um indicativo de não pertencimento ao grupo das “mulheres honestas” e nessa dúvida e ambiguidade, os homens se achavam no direito e não se esquivavam de perguntar o preço que elas cobravam, como mostra o quadro “A lavadeira”, de Pascal Bouveret, no qual dois homens passam e olham desejosos para a lavadeira que descansa sentada em um banco de praça. Não parece um quadro sobre prostituição, mas nesse mundo velado, pode ser... Fosse ou não, pelo simples fato de trabalhar na rua, esses homens a julgavam como tal. É nesse período, de consolidação da ascensão de industriais, banqueiros e demais membros do mercado financeiro na economia europeia, que a prostituição de alto luxo parece tornar-se cada vez mais numerosa e visível. Eram essas que mais encantavam os artistas da época, tanto pintores, como escritores e músicos. Algumas das mais famosas foram a Marquesa de Paiva, que inspirou Émile Zola a escrever “Nana” [1880] e Honoré de Balzac a escrever “Esplendor e Miséria das Cortesãs” [1839], Marie Duplessis, que inspirou Alexandre Dumas Filho a escrever “A Dama das Camélias” [1848], e todas essas certamente inspiraram até mesmo o brasileiro José de Alencar a escrever “Lucíola” [1862]. A exposição cita todas essas cortesãs, ou cocotes, em ambiente de paredes vermelhas, como eram os cabarés de luxo, ou as mansões que essas mulheres mandavam construir com o dinheiro dos amantes ricos dispostos a praticamente arruinarem-se por elas. A cama da Marquesa de Paiva, em formato de concha do mar, como se ela própria fosse uma pérola ou uma Vênus que nasce das ondas, está presente na exposição. Veio de seu rico hôtel particulier – termo francês usado para designar palácios urbanos -, o número 25 da Avenida Champs Elisée, considerado um dos maiores exemplos do requinte e da ostentação do Segundo Império francês, em meados do século XIX. Normalmente bancadas por “protetores” bem mais velhos e ricos, elas eram símbolo de status e virilidade para quem as pudesse ostentar. Ao andar ao lado delas, esses senhores sentiam-se menos idosos e mais poderosos. Elas tornavam-se ricas e, por vezes, terminavam ali, naquele último cliente fixo, sua atividade de prostituição. Frequentando aquele ambiente de gente privilegiada, formando amizades e ganhando sofisticação, muitas até casavam-se com membros da aristocracia (o caso da Marquesa de Paiva) e de Alice de Lancey, pintada por Carolus Durand. É o retrato de Alice, feito por Durand, que emoldura um dos grandes cartazes da entrada da exposição. Entretanto, ao tratar da hipocrisia e da moral cristã que execrava a prostituição e o passado dessas mulheres, o museu lança a questão: mesmo ricas e casadas, quem as deixava de ver como prostitutas naquela sociedade? Nesse sentido, um dos quadros mais emblemáticos é “A Madalena entre os Fariseus” [1891], de Jean Beráud, que mostra Madalena como uma cocote do século XIX, pedindo perdão, entre senhores ilustres engravatados que certamente usaram-na, mas a execram, sendo acolhida apenas por Cristo, o único vestido de forma bíblica. Seus braços abertos parecem dizer: quem somos nós para julgar? No mundo das artes, mulheres que subiam em palcos (para cantar, dançar ou atuar) eram vistas com dúvida pela dita “boa sociedade”. Como o trabalho no palco era mal remunerado, mas apreciado pelos endinheirados que pretendiam entender de arte, muitas sonhavam em encontrar um “protetor” que bancasse projetos, turnês, figurinos que permitissem a elas demonstrar todo o seu potencial e tornarem-se divas dos palcos. Naquele mundo patriarcal machista, na qual as mulheres viviam subjugas, esses mecenas devotariam tanta atenção e tanto dinheiro apenas pela arte? Ali surgem os quadros das bailarinas de Degas, em um deles a bailarina aparece colorida e viva em primeiro plano, mas podemos ver as pernas masculinas de um homem bem vestido atrás da cortina: provavelmente seu mecenas, seu “protetor”. Nesse quadro, Degas sublinha a ruptura entre a ilusão do espetáculo e a realidade dos serviços sexuais da bailarina. Também aparece a menção à grande atriz Sarah Bernhardt [1844-1923], que embora mundialmente reconhecida como grande diva dos palcos, é relacionada a inúmeros “protetores”. Mais uma vez, fica no ar a questão dos limites difusos da prostituição: sendo tão famosa e habitué das altas rodas parisienses, qualquer amante rico que tivesse deve ser visto como cliente? Sarah Bernhardt não poderia se apaixonar? Temos que vê-los como “protetores”? O mundo não é fácil de ler... Mas as pessoas gostavam e ainda gostam de dar rótulos. Para sairmos um pouco dos esplendores e voltarmos às misérias, a exposição também traz fotos e pinturas de “brasseries à femmes”, uma prostituição ilegal e por isso velada, promovida nos fundos de bares, restaurantes e cabarés. Muitos quadros de Toulouse-Lautrec ilustram essa galeria, pois ele era um dos que melhor capturava os rostos das prostitutas de seu tempo. Não as pintava como “femmes fatales” nem como vítimas da sociedade, mas como mulheres normais que levavam suas atividades cotidianas. Estão lá, sentadas em suas mesas de bar com cara de tédio a espera de um cliente, tomando um absinto e fumando um cigarro. A exposição ousa trazer fotos e até vídeos de sexo explícito: material produzido no final do século XIX e início do XX. Era o florescer das novas técnicas de fotografia e essa produção clandestina de imagens sempre precisava de prostitutas. Há um aviso para menores de 18 anos não entrarem naquelas cabines. Sem nenhum aviso, no entanto, estão as fotos que expõem as marcas das doenças venéreas tão comuns desse período, como a sífilis e a gonorreia. Fazer política está no dia a dia das instituições, mesmo quando elas se abstêm de certos temas e consideram-se apolíticas. É louvável quando instituições de peso, reconhecidas por serem formadoras de opinião, como museus e revistas, trazem para o centro de suas discussões temas polêmicos como a prostituição. O museu, afinal, é um espaço político. Eneida Quadros Queiroz é historiadora e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Museus. (http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/arte-politica-e-prostituicao. Acesso em 29/04//2016)

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