A revolução cruza o Atlântico

Frouxo, inepto e de poucas realizações. A passagem de D. Fernando José Portugal e Castro pelo governo da Bahia foi recheada de críticas. Ele não agia com prevenção e não desenvolvia a contento as funções repressivas que lhe cabiam. Não conseguia refrear as rebeldias dos escravos nem a quebra da disciplina entre os militares, com quem agia como contemporizador. Nas tropas, reinavam a dissolução dos costumes e o desrespeito. Na administração da justiça, atuava em consonância com os interesses dos desembargadores, aos quais sempre defendera. Toda a sua inércia, enfim, abriu caminho para a propagação das ideias revolucionárias francesas na região. D. Fernando foi o 50º governador da Bahia. Nasceu em 1753 e faleceu no ano de 1817, já como Marquês de Aguiar, no Rio de Janeiro. Aristocrata aparentado com D. Maria I, ocupou vários cargos além do governo baiano. Antes de chegar ao Brasil, foi membro da Relação do Porto e, depois, Desembargador da Relação de Lisboa. Entre 1801 e 1806 foi Vice-Rei do Brasil. No ano seguinte, presidiu o Conselho Ultramarino. E em 1811 esteve à frente do Real Erário. Ocupou ainda os Ministérios do Reino e da Guerra e dos Negócios Estrangeiros no Brasil Joanino. Sua atuação como Ministro do Reino também foi ridicularizada por Hipólito da Costa, no Correio Braziliense: era adjetivado como “relógio atrasado do governo”. À época de sua morte, o embaixador francês no Brasil, escrevendo ao ministério das relações exteriores da França, louvou sua honestidade, evidenciada na penúria financeira em que deixou sua viúva e nas dificuldades para custear seu enterro. Em 1792, a Intendência Geral de Polícia de Lisboa, comandada por Diogo Inácio Pina Manique, identificou uma expedição francesa cujo objetivo seria “republicanizar a colônia portuguesa na América”. Uma Ordem Régia da rainha D. Maria foi enviada a D. Fernando. O documento lhe recomendava vigilância sobre o navio Le Diligent, que teria sido armado para “introduzir nas colônias estrangeiras o mesmo espírito de liberdade que” reinava na França e “dividir as forças dos soberanos do Novo Mundo”. A embarcação, que passaria pelo Rio de Janeiro e pela Bahia, trazia a bordo a Constituição francesa traduzida em espanhol e em português. Alguns anos mais tarde, em novembro de 1796, chegava à Bahia o comandante Antoine René Larcher, de outra nau francesa, a La Preneuse. Vinha acompanhado de sua mulher, de duas filhas menores, de membros da fragata e de passageiros, dentre eles Madame Joana de Entremeuse. O tenente Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja foi incumbido de vigiar Larcher, que acabou se aproximando bastante do seu vigia e da população local. Bem recebido pelo alto escalão do poder em Salvador, o comandante francês encontrou alguns jovens da elite baiana, ativos e radicais do ponto de vista político, livres das “velhas superstições” e ávidos na leitura de “livros franceses”, entusiasmados com a presença dos visitantes. Supõe-se que, em serões secretos ocorridos na casa do farmacêutico João Ladislau Figueiredo de Melo, Larcher tenha desfiado a filosofia dos enciclopedistas e suas teorias políticas diante de pessoas como o padre e comerciante Francisco Agostinho Gomes, o médico Cipriano Barata de Almeida, o aristocrata canavieiro Inácio Siqueira Bulcão e o professor Francisco Moniz Barreto. Teria, ainda, participado de banquete e colaborado para a fundação da sociedade secreta Cavaleiros da Luz, o que é colocado em dúvida por alguns historiadores. Essa movimentação escandalizou a elite local. O tenente Pantoja chegou a ser admoestado pelo governador em razão de seus excessos de entusiasmo com o visitante francês. Larcher partiu da Bahia em janeiro de 1797. Chegando à França, submeteu à aprovação do Diretório, que então dirigia a República Francesa, um projeto de invasão de Salvador. Ele havia recolhido informações sobre as defesas da cidade, como munições e a disposição das fortificações. Afirmava existir um poderoso sentimento antiabsolutista em membros da elite local, traçando um projeto de aliança política entre luso-americanos e franceses, que contaria com a sublevação de parte da tropa aquartelada na Bahia, iniciando-se o levante. Os franceses cuidariam da proteção da Capitania até a organização eficaz do aparelho de Estado soberano em moldes republicanos, ao que se seguiria a independência. Os baianos, segundo o projeto, teriam solicitado 4 mil fuzis. Enquanto isto, do lado de cá do Atlântico, o coronel José de Mattos Ferreira e Lucena alertava o governador baiano sobre a ocorrência de conversas sediciosas. A providência de D. Fernando foi advertir os participantes sobre os perigos que corriam, fazendo com que alguns deles saíssem de circulação. Em outra atitude tolerante, satisfez-se em chamar atenção do tenente Hermógenes Pantoja, que por isso ficou recolhido em casa e foi dado como doente. Apesar dos burburinhos, em maio de 1798 o governador escrevia para a Corte, mostrando-se confiante na tranquilidade da situação da Capitania. Dizia que a “lição de papéis públicos” – como as gazetas inglesas, que não eram proibidas – estimularia a curiosidade de algumas pessoas, “especialmente entre a mocidade menos cordata e leve de entendimento”. Elas ficariam estimuladas a falar com “mais alguma liberdade ou leveza” sobre os acontecimentos europeus, sem que com isso se introduzissem, porém, “princípios Jacobinos” ou se dessem “ajuntamentos perniciosos”, argumentava. D. Fernando também esclarecia que, apenas por cautela, chamava diante de si um ou outro mancebo de que alguém lhe tivesse falado que “pensa[va] com menos instrução nos verdadeiros princípios da religião, prevenindo-os e repreendendo-os com semelhante providência, enquanto o caso não ped[iss]e outra maior”. A postura tolerante do governador comprova sua inépcia política – ou dá margem para que hoje se pense em seu possível envolvimento com a ebulição insurgente. O governo francês refutou a proposta de invasão da Bahia. Mas não desistiu de acompanhar o que se passava na América portuguesa. Continuou a atuar para desenvolver o contrabando e semear a revolta nestas plagas – o mesmo propósito da presença anterior de Larcher pelas águas do Atlântico sul. Nessa iniciativa, a França contava com parceiros internacionais: agentes privados e com alguma cobertura da embaixada da Espanha, em Lisboa. Em 1799, segundo o Intendente de Polícia Diogo Inácio Pina Manique, deu-se a apreensão de papéis, mercadorias contrabandeadas e cartas pertencentes ao espanhol D. Gaspar Rico, procedente do Rio de Janeiro, suspeito de contrabando. As cartas, encontradas em sua algibeira, teriam sido escritas por Madame Joana Entremeuse, que esteve entre as passageiras trazidas por Larcher a Salvador na passagem de 1796 para 1797. Segundo Manique, Madame Joana Entremeuse “tinha entrado por duas vezes no Porto do Rio de Janeiro e da Bahia de Todos os Santos por diversas vezes”. Ela fora presa a bordo do navio Confiança assim que chegou, ficando comprovado que a embarcação era sua, “sendo simulada a Escritura de Venda que fez no Rio de Janeiro, não tendo outro motivo mais que embandeirar-se com Bandeira Portuguesa e poder continuar o giro do Comércio clandestino com as Colônias Portuguesas, como já tinha feito e repetido por diversas vezes debaixo do pretexto de Arribadas. Ou então, talvez por ser encarregada de fazer algumas indagações ou dispor os ânimos de alguns habitantes daquelas duas Cidades e ganhar amizades com algumas famílias para outros fins”. Logo, deduz-se, ela mesclava o contrabando à espionagem. Para o Intendente de Polícia, tais suspeitos fins seriam sediciosos. O Capitão João de Souza Lobo assumiu a propriedade da embarcação apenas para, caso se encontrassem na viagem alguns navios ingleses de guerra, poder escapar de tê-la apreendida. Para evitar que os franceses pudessem apreender o Confiança, Joana Entremeuse trazia passaporte francês. Ambos, Lobo e Joana, confessaram-no às autoridades portuguesas. D. Gaspar Rico, ao vir do Rio de Janeiro no comboio, em embarcação espanhola, comunicara-se com Joana em alto-mar, indo ao seu navio. Demonstrando suas simpatias políticas, ele levava consigo uma bandeira republicana. Na perspectiva de Pina Manique, Joana Entremeuse e Gaspar Rico eram dublês de contrabandistas e espiões-agentes revolucionários a serviço da França. Ou ao menos estariam envolvidos no comércio clandestino. Desejariam fazer negócios com a Bahia e o Rio, de olho no ouro e nos diamantes que poderiam obter, ou faziam um diagnóstico das forças que a Coroa portuguesa tinha ali, além dos ânimos dos habitantes da região. Neste caso, o propósito seria disseminar as ideias jacobinas pelas quais levavam os povos à rebelião. Os papéis encontrados na posse de Gaspar Rico faziam referências às colônias de Espanha, mas isto seria apenas um disfarce. Assim, eles se refeririam, na verdade, às duas localidades da América portuguesa. As repetidas viagens de Entremeuse ao Brasil e a presença de comerciantes franceses em debates travados na Bahia reforçam o diagnóstico de Pina Manique acerca do caráter duplo – comercial e político – da ação de ambos. Igual sentido tem a notícia que D. Fernando Portugal e Castro dera, antes de outubro 1798, a D. Rodrigo de Souza Coutinho a respeito do assédio de corsários franceses e suas pretensões de propagação revolucionária. Tudo isto mostra que o perigo da sedição continuava a rondar a Bahia, apesar da tímida repressão iniciada em agosto de 1798. O governo português parecia ter plena consciência do perigo, ainda que não pudesse radiografá-lo com precisão. Enquanto isso, inversamente, o governador da Bahia o minimizava. Em junho de 1798, D. Fernando recebeu um ofício de D. Rodrigo de Souza Coutinho com uma avaliação negativa a respeito de sua gestão. O ministro do Príncipe Regente criticava a frouxidão e falta de firmeza de D. Fernando. E por conta disso, fazia prognósticos de um futuro pernicioso. As críticas de D. Rodrigo ao baiano prosseguiram mesmo depois que o governador ordenou a investigação sobre os pasquins que foram afixados em Salvador e que ecoavam máximas claramente inspiradas na Revolução Francesa e opostas ao domínio colonial. Tais pasquins, assim, denunciavam o caráter despótico do governo monárquico e de seus ministros, classifcando o “rei” como tirano; defendiam a liberdade e a igualdade; tomavam o povo bahiense como “republicano” ; pregavam punições contra os padres regulares e seculares que se colocassem contra a liberdade; propunham aumento dos soldos; afirmavam a defesa da propriedade de mercadores, lavradores, senhores de engenho, bem como sua união com taverneiros e de brancos, pardos e pretos; propunham o confisco dos bens dos que se colocassem contra a Revolução; levantavam a bandeira da liberdade de comércio; e, por fim, classificavam como “péssimo” o “jugo reinável da Europa”. Em outubro de 1798, o mesmo D. Rodrigo noticiava ao governador que murmúrios haviam chegado a Lisboa sobre o comportamento e as ideias de figuras importantes da sociedade soteropolitana, que estariam afetadas por “abomináveis” princípios franceses. Era o caso do padre Francisco Agostinho Gomes, que teria oferecido um banquete de carne na sexta-feira santa aos sectários dos mesmos princípios por ele seguidos. O ministro considerava que a frouxidão do governo de D. Fernando e a corrupção do Tribunal da Relação da Bahia estimulavam os poderosos a “praticarem violências e assuadas”. Temia-se que, em função da indisciplina das tropas e sua falta de subordinação, a Capitania estivesse vulnerável aos ataques de forças francesas que porventura ocorressem. Segundo relatava D. Rodrigo, a soberana ordenara que o governador detivesse o padre e seus amigos. O governador abriu uma devassa, mas não prendeu o acusado nem seus seguidores: a investigação limitou-se a ouvir pessoas que nada sabiam, que nada diriam. A escolha das testemunhas foi, portanto, seletiva, com o objetivo de não incriminá-lo. A rainha continuou a insistir sobre a necessidade de maior firmeza do governador, manifestando o desejo de que ele descobrisse quem eram os conspiradores e reforçasse o controle sobre as tropas e o funcionamento da justiça. Há indícios de que D. Fernando protegeu alguns homens de “melhor qualidade” durante as várias devassas feitas sob seu governo. Ele foi complacente com Francisco Agostinho Gomes e Hermógenes Pantoja. Se não Cipriano Barata de Almeida, ao menos Marcelino Antônio de Souza, não acusado de Inconfidência, mereceu sua proteção, apesar de ter recebido de D. Rodrigo de Souza Coutinho uma denúncia contra ambos. Uma história, várias versões Ambiguidades e matizes cercam de mistérios a Inconfidência Baiana. O perfil social dos conjurados e a circulação das ideias na sociedade baiana de fins do século XVIII têm merecido abordagens muito distintas da historiografia, havendo mesmo posição claramente opostas. Pelo menos duas questões sobre o movimento são complexas: a participação de algumas pessoas “de condição” – como o comerciante Francisco Agostinho Gomes, o tenente Hermógenes Pantoja, o professor Muniz Barreto e o cirurgião Cipriano Barata – e, sobretudo, a maneira pela qual artesãos pobres e escravos conseguiram ter acesso às ideias que seus depoimentos e os próprios panfletos demonstram. Numa ponta da historiografia, está Kátia de Queiros Mattoso, para quem o extremo da sociedade baiana – isto é, a aristocracia local – esteve à margem do movimento, cujos protagonistas seriam homens pobres e de média posição social (dando menos importância, no entanto, à participação dos cativos). Do outro lado, alguns historiadores creem que a conjuração estabeleceu algum elo entre os extremos sociais, propiciando a circulação de ideias e uma coparticipação na organização do movimento. As chamadas “francesias” foram elo entre os diversos grupos sociais. A expressão era de uso corrente, servindo para designar ações que expressavam sentimentos anti-monárquicos (mais precisamente republicanos), autonomistas (isto é, favoráveis à emancipação política) ou anti-religiosos. As “francesias”, portanto, tratavam-se frequentemente de um duplo e combinado ataque: à religião e às instituições políticas. As próprias autoridades de então já enxergavam esse duplo combate. Segundo um documento anônimo, na lógica dos que seguiam as “francesias”, “se devia principiar pela destruição da Religião, porque destruída esta, falta logo o espírito de caridade nos sublevados e faltando-se esta enchem-se logo o espírito de tirania e cheios desse espírito, cortam, freiam, matam, esquartejam, desonram e roubam a torto e direito, e causam com desumanidade todos os mais donos e males ao povo”. Na verdade, como bem assinala Istvá Jancsó, “Religião e política formavam um emaranhado inextrincável, tanto aos olhos do poder quanto ao daqueles que negavam sua legitimidade”. O dissenso historiográfico tem origem, em grande parte, na própria documentação que serve de base para os estudos históricos. De um lado, a devassa conduzida pelo desembargador Avelar de Barbedo, entre agosto e novembro de 1798, para averiguar a autoria de pasquins sediciosos afixados naquele ano em Salvador. De outro, aquela dirigida pelo desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, entre agosto de 1798 e novembro de 1799, para analisar a tentativa de sedição de 1798. Tais investigações foram objeto de duas edições: uma primeira, datada de 1931, da Biblioteca Nacional, intitulada A Inconfidência da Bahia: devassas e seqüestros. E a segunda, de 1998: Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates, do Arquivo Público do Estado da Bahia. Segundo Luís Henrique Dias Tavares, a edição da Biblioteca Nacional é incompleta, trazendo apenas partes das duas devassas. Além disso, nos próprios autos transcritos existiriam negliências e ambiguidades. Os interrogatórios não visaram à “elucidação de aspectos importantes”. No inquérito conduzido, por exemplo, pelo desembargador Avelar de Barbedo, não se entende por que não foram localizados dois personagens citados: Manoel Henriques e João da Silva Norbona, apesar de haver informações suficientes para isso. Nas duas devassas, os desembargadores Barbedo e Costa Pinto preferiram considerar que um dos conjurados, Luís Gonzaga das Virgens, inventou quando atribuiu a João da Silva Norbona a autoria dos cadernos que foram encontrados com ele próprio. Affonso Ruy aponta outro silêncio das investigações: elas não procuram descobrir as razões da presença de um oficial inglês, hóspede do sargento Joaquim Antônio da Silva, em reuniões realizadas na casa do alfaiate João de Deus. O modo como a justiça secular, enfim, sob as mãos dos desembargadores, conduziu as investigações, circunscrevendo a tentativa de sedição à “baixa ralé”, definiu – e restringiu –, por si só, a suposta origem social do movimento. Assim, limitou-a a um espectro social que vai dos escravos a pessoas de um nível um pouco mais elevado, como trabalhadores manuais e soldados já fora da condição servil. No embargo que fez em defesa dos réus, o bacharel formado em Leis, José Barbosa de Oliveira, procurou negar que eles tivessem intenção “de promoverem um levantamento e sedição contra o estado com o fim de estabelecerem um governo democrático”. Alegou que a iniciativa requereria leis e Luzes, e que estes refinamentos seriam inacessíveis a homens da qualidade dos réus: “uns oficiais de alfaiate, outros de pedreiro, outros soldados rasos, escravos e de menor idade, todas pessoas de baixa-ralé”. Logo, em paralelo à própria condução da investigação pelos magistrados, que livrou os homens de melhor condição e tornou réus apenas os de baixa extração social, a defesa que se fez dos conjurados também restringiu o enraizamento social do movimento. Todavia, a mesma defesa parecia ter consciência de que os envolvidos na tentativa de sedição não se limitavam aos “réus”, àqueles elementos da “baixa-ralé”. Ou ao menos que, dentre eles, existiriam divisões e seriam necessárias, por isto mesmo, articulações que unissem os segmentos presentes no movimento. Assim, dizia José Barbosa de Oliveira: “Para se dar democracia era necessário que os embargantes [isto é, os réus] tivessem previsto e ordenado antes a divisão das classes donde deveriam sair os eleitos assim como praticou Sólon em Atenas”, algo impossível para pessoas daquela – má – qualidade. Conforme assinala Carlos Guilherme Mota em livro seminal, os próprios sujeitos históricos envolvidos em movimentos de contestação, em fins do período colonial, tinham consciência que as diferentes condições sociais faziam com que “participassem de maneiras diversas – e por vezes antagônicas – no processo em curso”. E, assim, “existiam oposições entre ‘pardos e pretos’”, os elementos não-brancos envolvidos na Inconfidência da Bahia, percebidas pelas autoridades, como era o caso do então governador D. Fernando, que considerava os pardos mais astutos e sagazes. Em grande medida devido aos mistérios que cercam a identidade, o perfil social e a circulação de ideias entre os conspiradores baianos de 1798, em função dos aspectos sobre os quais há dificuldade de obter informações mais precisas, os historiadores não chegam a um acordo sobre como isto se deu. Um aspecto essencial no que diz respeito às articulações são as chamadas “francesias”, encruzilhada em que se encontravam os distintos atores sociais e, certamente, ponto de partida para seus desencontros. O padre subversivo Francisco Agostinho Gomes nasceu em 1769, em Salvador. Era filho de um grande comerciante estabelecido na Bahia, com ascendentes na província de Trás-os-Montes, em Portugal, homem cuja opulência e prestígio parecem ter pavimentado seu caminho para que fosse habilitado como cavaleiro professo na Ordem de Cristo. O pai logo percebeu os dotes intelectuais que o descendente tinha, e destinou-lhe cedo a Portugal para estudar e abraçar a vida eclesiástica, dentro da qual alcançou a ordem de diácono. Mas com a morte do progenitor, Agostinho teria voltado ao Brasil e, graças a um indulto apostólico, veio a licenciar-se de suas obrigações como diácono para gerir a casa comercial que herdara. Agostinho herdou uma fortuna, mas não se dedicou às atividades do seu ofício. Preferiu seguir aquelas com as quais tinha mais afinidades: a ciência, que lhe era familiar, particularmente a botânica, para cujo desenvolvimento o padre encontrava no Brasil as melhores condições para desenvolver observações. Para realizar suas incursões científicas, ele fez estudos de francês e de inglês, completando-os sem ter um mestre. Em 1796, Francisco Agostinho Gomes entregou a administração de sua casa comercial a Manuel José de Melo, o que lhe permitiu viajar para Portugal. Anos depois, retomou a administração dos negócios, em função dos prejuízos que lhe causou o administrador que escolheu. Nos anos de 1797 e 1798, se envolveu em discussões relacionadas, de algum modo, à conjuração que eclodiu na Bahia naquele período. Após 1798, buscou aproximar-se de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro do Príncipe Regente D. João. Nesta estadia em Portugal, desenvolveu uma série de iniciativas que mostram seu espírito empreendedor, científico e suas ligações com a corte. Num momento em que os portugueses procuravam dinamizar sua economia e enfrentar as restrições que a Inglaterra fixou para a saída de seu cobre, em julho de 1799 Agostinho propôs a formação de uma companhia para a exploração de minas de cobre e ferro na Bahia. Solicitou, ainda, para tanto, sesmarias, escravos, mineiros e isenção de impostos sobre os metais, além do privilégio de fundi-los e a preferência de sua empresa para extrair outros minérios nas áreas sob seu controle. Ele dizia ter “o intuito de fazer com que Portugal venha a ser abundante de metais tão úteis à agricultura, às artes e à navegação, e para que o nosso Portugal possa ter uma Marinha de Guerra que seja respeitável”. Em agradecimento às benesses pleiteadas, Agostinho prometeu fundir com o primeiro cobre que encontrasse uma estátua em homenagem ao príncipe regente e ao seu governo. Além disso, em 1800, o comerciante baiano enviou muitas plantas nativas do Brasil ao Jardim Real de Lisboa, classificando-as segundo o sistema de Lineu, e propôs a propagação de novas culturas, como a da pimenta-da-índia. Em 1802, o viajante inglês Thomas Lindley, que havia conhecido Agostinho numa viagem anterior, o reencontrou na Bahia, o que mostra que o padre já havia, então, retornado do reino. Na biblioteca do baiano, Lindley deparou-se com livros escritos em francês e inglês. Lá se encontrariam L’Encyclopédie,de d’Alembert, e mais obras de Buffon e Lavoisier, entre outros autores sobretudo de história natural, economia política, viagens e estudos de filosofia, aos quais ele juntara um completo aparato astronômico vindo de Londres. Os autores e títulos encontrados por Lindley na biblioteca de Agostinho convergem quase que integralmente com o acervo de livros a ele despachado de Lisboa em fins do século XVIII, com exceção da L’Encyclopèdie – na lista de obras de 1799, não há nenhum título que se aproxime, e na de 1800 menciona-se apenas a Encyclopedia Britannica. A análise de livros comprados pelo padre, enviados de Lisboa para a Bahia naqueles anos, como consta de documentos submetidos ao Desembargo do Paço, permite inferir que ele se interessava pela área científica. O viajante inglês, ademais, não ficou apenas na observação, tendo dialogado com Agostinho Gomes. Dele, ouviu elogios à História da América, de William Robertson. E, quanto a A riqueza das nações, de Adam Smith, o lamento pelo “quão pouco do seu sistema” ser “observado no Brasil”. Daí, infere-se uma referência do padre ao monopólio comercial e à defesa do livre-comércio. Seus juízos revelam, por um lado, o endosso às críticas presentes na obra de William Robertson à colonização europeia na América. E, por outro, sua adesão ao liberalismo de Adam Smith. As duas obras estavam ausentes nas listas de livros submetidas ao Desembargo do Paço em 1799 e 1800. Segundo Lindley, Agostinho Gomes estava familiarizado com as disputas políticas do mundo anglo-saxão. Ele discorrera sobre os estudos de Thomas Paine, sobre o qual parecia enfatizar algumas de “suas inúteis opiniões”, sendo possível presumir que se tratasse de uma possível defesa da independência da América inglesa feita por Paine. Novamente, percebe-se o quanto o padre estava afinado com as ideias das Luzes mais radicais. A perspectiva crítica do baiano somava-se ao seu interesse pela ciência. Lindley registra o fato de Agostinho ter colecionado “muitos artigos valiosos de espécies marinhas, fósseis e minerais”. Ele teria feito numerosas descobertas botânicas e mostrado algumas novas espécies, arranjadas conforme o sistema de Lineu e encaminhadas para Lisboa. Lineu, eminente cientista das Luzes, aparece entre os autores presentes na lista de livros submetida ao crivo do Desembargo do Paço em 1800. Lindley, enfim, considerava o padre Agostinho Gomes, por seu interesse científico, uma exceção no panorama intelectual do Brasil em pleno século das Luzes. Em fins do século XVIII, Agostinho foi acusado de promover jantares de carne em dias de preceito religioso – isto é, interdição de ingestão de carne vermelha. Também mostrou simpatia pelos princípios franceses e por suas constituições. Ele lia gazetas estrangeiras e divulgava as notícias que nelas encontrava. Sua vida privada não seguia as regras estabelecidas pela Igreja, embora se enquadrasse nos padrões morais vigentes, em especial na sociedade colonial: segundo Lúcia Bastos Pereira das Neves, ele teve relações ilícitas com D. Maria Luzia, uma viúva de Salvador que lhe deu sete filhos, legitimados em 1814. Nos idos de 1800, uma denúncia contra Francisco Agostinho Gomes foi recebida e, em seguida, encaminhada à Inquisição de Lisboa por um cônego de nome não registrado, muito provavelmente um comissário da Inquisição. Ela foi escrita pelo frei José de Jesus, certamente do Convento de Santa Tereza, da cidade da Bahia, com base em declaração feita antes por D. Josefa Francisca, moradora da rua do Fogo. O frei, ao que tudo indica, mandou a denúncia ao cônego, que a remeteu para Lisboa. A penitente ouvira de Agostinho Gomes algumas proposições claramente heréticas. Além de afirmar que não havia pecado na fornicação simples – isto é, a relação genital entre homem solteiro, não pertencente ao estado sacerdotal, e mulher igualmente solteira, não virgem e não freira, a proposição herética mais popular da época colonial –, ele negava, implicitamente, os dogmas da consubstanciação e transubstanciação. Dizia que a hóstia era apenas um pedaço de pão. Logo, ela não se transformava no corpo de Cristo. Disto, deduzia que não haveria qualquer impedimento para a comunhão. O clérigo baiano defendia também ideias que pareciam conjugar materialismo e deísmo. Combinava a negação da existência do Inferno à compreensão de que à alma sucederia o mesmo que se passava com os “corpos”: todas as “cousas visíveis” teriam sido criadas pela natureza, que lhes havia dado seu ser e, por isso mesmo, “acabariam com ela”. As almas, do mesmo modo que os corpos, desfaziam-se depois da morte. “E subindo aos ares se conglutinavam com os vegetais”, isto é, juntavam-se a eles. Dessas ideias, podem ser feitas três deduções: primeiramente, que a alma funcionava como os corpos (se é que ela mesma não seria corpórea). Em segundo lugar, que a natureza era, na verdade, Deus. Ou melhor, ocuparia o lugar atribuído a Ele pelas religiões instituídas, na medida em que dava o “ser” a tudo, leitura típica dos pensadores deístas de então. E, por fim, do ponto de vista filosófico, havia um pressuposto monista, ou seja, um entendimento básico segundo o qual a realidade seria una e que nela todos os elementos teriam seu ser dado por uma mesma origem, à qual retornavam em suas transformações no tempo. Como o “ser” de todas as coisas era dado pela natureza, a transformação dessas mesmas coisas, conclui-se, processava-se conforme regras fixadas naturalmente. Na compreensão advogada supostamente por Agostinho Gomes sobre a alma, a natureza não agiria como um árbitro que se colocaria acima das leis: logo, se é que a natureza era entendida por ele como Deus, este atuaria em conformidade com as leis naturais. Não haveria, portanto, nenhum traço de providencialismo na ação divina, na medida em que nem se fala em Deus nem muito menos se lhe confere a posição de guiar tudo o que se vê no mundo, inclusive no sentido de aplicar penas para boas e más ações do ponto de vista moral. Todos esses elementos apontam para uma perspectiva deísta, que pode ser melhor identificada se avaliarmos a tipologia feita por Samuel Clarke, teólogo anglicano ilustrado, que curiosamente figurava com um título na remessa de livro feita para Francisco Agostinho Gomes em 1799. Clarke dividia os deístas em quatro tipos: aqueles que pareciam crer na existência de um ser supremo, infinito, independente e inteligente, mas que negavam a providência; os que acreditavam em Deus e na providência, mas refutavam sua ação no que se referisse à aplicação de penas às ações moralmente boas ou ruins; os que aceitavam Deus, a providência, o caráter obrigatório da moral, sem, contudo, admitir a imortalidade da alma e a vida eterna; e, ainda, aqueles que acreditavam na existência de um ser único, eterno, infinito, todo-poderoso e todo-sábio, criador, conservador e monarca soberano do Universo. As ideias do padre Agostinho Gomes pareciam enquadrar-se entre aquelas defendidas pelo primeiro tipo de deístas, na medida em que expressavam a crença na natureza, espécie de ser supremo, independente e inteligente, mas negavam a providência. Ao mesmo tempo, incorporavam todas as negações características dos outros tipos de libertinos: Deus (ou melhor, a natureza) não impõe penas às ações moralmente boas ou más. A alma não é imortal, nem há vida eterna. E Deus não é monarca soberano do Universo. O deísmo monista subjacente às formulações de Agostinho Gomes pode ter origens múltiplas. Há pontos e convergência claros, além de distâncias evidentes entre, de um lado, as ideias do inconfidente baiano em exame e, de outro, aquelas defendidas por Bento Baruch Espinosae outros autores das Luzes. As possíveis proximidades não são indicativas de leituras diretas de um ou outro pensador, mas sim da familiaridade e da adesão do leitor Agostinho a princípios, concepções e valores que integravam um patrimônio cultural mais amplo, acessado por diferentes formas: livros impressos, manuscritos (em parte, clandestinos) e comunicação oral. Disseminadores de desobediências Depois de estudar na Universidade de Coimbra entre 1786 e 1790, o cirurgião Cipriano Barata retornou à Bahia. Ali, articulou proposições heréticas e sedição num sistema coerente de ideias, conforme atestam documentos inquisitoriais. Na ação de Barata, há primeiramente o uso de manuscritos, trasladados, copiados por letrados e postos em circulação entre os rústicos. O médico apareceu com os manuscritos, que foram copiados por Marcelino e, depois, sabe-se lá por mais quem. Tais documentos traziam ideias contra a fé e a monarquia. Além disso, inscreviam-se numa cultura marcada pela oralidade, valendo-se da mesma e nutrindo-a com elementos heréticos e subversivos, por meio do desenvolvimento da leitura oral e coletiva, feita de casa em casa. Essas práticas conectavam os letrados e os rústicos, com a intenção deliberada dos primeiros de fazer proselitismo em prol da insurgência. Na perspectiva desses hereges e subversivos, o modelo da Revolução francesa deveria ser imitado. E ele estava associado ao aprendizado do francês, pois há menção ao ensino de língua, com professor particular. Em suas conversas e nos manuscritos, Cipriano Barata e Marcelino de Souza juntavam deísmo e forte oposição às autoridades religiosas e monárquicas, além de desprezo à religião católica: “[…] afirmam e mostram crer que, fora de um Ente Supremo, tudo o mais é fantasma e em nada se deve crer; que não há Inferno, nem Purgatório; que a morte do homem é igual a de outro qualquer Bruto e que, por isso, aquele pode usar livremente da sua vontade e gozar das delícias que o Mundo produz; que tudo o que se vê criado sobre a Terra se deve ao Homem, e não a Deus; que os Ministros da Igreja são uns Impostores, que destroem a Sociedade Humana, e igual absurdo afirmam dos Monarcas. Finalmente, desprezam a Religião e os seus preceitos. E só estão prontos a morrer pelos erros que seguem, que dizem hão de se retratar se forem presos pelo Santo Ofício, permanecendo depois na Sua antiga crença.” O deslizamento-imbricação da heresia e da sedição foi claramente percebido por João Lobato de Almeida, comissário da Inquisição de Lisboa. Ele faz este registro em suas reflexões sobre a atuação de Barata e de Marcelino Antônio de Souza, e sobre a Bahia em fins do século XVIII, escritas em correspondência dirigida à Inquisição e à rainha D. Maria I. O comissário apontava um processo ameaçador à ordem religiosa e política, e identificava determinados atores sociais, comportamentos e proposições heréticas e subversivas. No âmbito das proposições, citava as “francesias”, pelas quais se somava a descrença na vida da alma ao destemor em relação ao corpóreo, heresia e sedição. Como atores, ele menciona, de um lado, Cipriano Barata e outros doutores, “desobedientes” e disseminadores de desobediências. E, de outro, o governador da Bahia D. Fernando Portugal e Castro e mais “mestres”, que em vez de reprimir práticas, ideias e comportamentos subversivos, agiam com tolerância. Alguns desses mesmos oficiais da Coroa, dizia, eram partidários dos princípios abraçados pelos acusados de francesias. Na correspondência à Inquisição, o comissário fazia um clamor à Sua Majestade e manifestava uma obediência “cega”, postura questionada pelos sediciosos e hereges da Bahia: “Clamo a Vossa Majestade, com o grande fervor de um verdadeiro católico, queira pôr as providências necessárias a fim de degolar a cabeça da hidra infernal, que vai, com passos insensíveis, produzindo a sua maldade, a fim de desterrar desta terra a nossa santa religião e obediência cega, que sempre professou aos nossos monarcas”. Luiz Carlos Villalta http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/a-revolucao-cruza-o-atlantico-1(acesso em 03/12/2015)

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