A Independência delas: na Bahia, a luta pela emancipação do Brasil mudou a vida de muitas mulheres, dentro e fora do campo de batalha

Desesperada com a reviravolta que acometera sua vida, Ana Joaquina do Livramento apresentou um requerimento a D. Pedro I quando o imperador visitou a Bahia em 1826. Natural de Salvador, casada com Elias Pinto de Siqueira, ela pedia uma esmola, alegando que vivia “pobremente e em grande necessidade pela falta de seu esposo”. Desde “a guerra dos lusitanos, nunca mais tive notícias dele”. Aproveitou para lamentar “a falta de dois escravos que pereceram na guerra; e o grande roubo que os ditos lusitanos se fizeram quando a suplicante se retirou para o Recôncavo”. Não sabemos se o requerimento de Ana Joaquina foi atendido, nem o que aconteceu com seu marido, mas uma coisa é certa: assim como ela, milhares de baianas tiveram a vida abalada pela guerra da Independência. E não somente como vítimas de uma luta travada entre homens. Muitas mulheres participaram ativamente da batalha patriótica, buscando melhorar sua sorte e chegando a pegar em armas. Dos primeiros conflitos armados entre batalhões portugueses e baianos, em fevereiro de 1822, até a entrada do Exército Pacificador, em julho de 1823, a Bahia viveu em estado de guerra. Quando D. Pedro foi aclamado como regente pelas vilas do Recôncavo, entre junho e julho de 1822, os senhores de engenho organizaram forças armadas para sitiar a cidade de Salvador. Não seria fácil expulsar as tropas portuguesas sob o comando de Luiz Inácio Madeira de Melo. Mesmo depois da chegada do general Pedro Labatut, enviado pelo novo imperador para comandar as forças baianas com o reforço de tropas do Rio de Janeiro e de Pernambuco, os brasileiros não tinham condições de tomar a cidade de assalto. Mas organizaram um bloqueio por mar e por terra para cortar o fornecimento de víveres aos sitiados. Nova frota brasileira, sob o comando de Lorde Cochrane, chegou em abril de 1823, fechando definitivamente o cerco. Em terra, gastava-se mais tempo para cavar trincheiras do que em combates. Houve tentativas da parte dos portugueses de romper o sítio, entre elas a batalha de Pirajá e o ataque à ilha de Itaparica – ambos com vitórias brasileiras. Tradicionalmente, a história militar registra os feitos dos homens e dá destaque aos oficiais. Mas uma guerra desse tamanho afeta toda a sociedade. Em julho de 1823, os patriotas contavam com cerca de 15 mil indivíduos pegando em armas. O recrutamento em larga escala tirou pais, maridos e filhos das suas roças, oficinas e casas, legando novas responsabilidades a mulheres como Ana Joaquina e como Maria Bárbara Garcés Pinto de Madureira, senhora de engenho e mulher de um deputado nas Cortes de Lisboa (o Parlamento português no qual ele era um dos representantes baianos). Com o início do conflito, ela teve que tomar conta dos negócios da família e lidar com as dificuldades de administrar um engenho de açúcar em tempo de guerra. Maria Bárbara repetidamente lamentava a desordem e a “linguagem raivosa” encontrada “na boca dos negros”. Era comum escravos fugirem dos seus senhores. Alguns chegaram, inclusive, a servir nas forças patriotas – e seriam posteriormente libertos. A retórica patriótica e novos conceitos amplamente divulgados – constituição, liberdade, pátria, igualdade – mudavam as relações sociais. Como em todo conflito armado, os civis são as maiores vítimas. Na guerra da Independência na Bahia, a mais preeminente delas foi a abadessa do Convento da Lapa, Joana Angélica, morta em 20 de fevereiro de 1822 ao tentar impedir a entrada de tropas portuguesas no claustro. Os soldados procuravam patriotas que teriam dado tiros das janelas do edifício. Muitos civis fugiam da cidade, fosse por opção política ou para buscar o que comer. Em maio de 1823, o general Madeira permitiu a saída de 1.274 mulheres, crianças e idosos. Eles eram encarados como bocas inúteis, numa praça sitiada em que o comandante mal tinha condições de sustentar suas tropas. As baianas não estavam alheias às questões políticas. Em maio de 1822, 186 senhoras manifestaram seu apoio a D. Pedro I por meio de uma carta à princesa Leopoldina. A senhora de engenho Maria Bárbara apoiava as Cortes de Lisboa, mas criticou duramente a atuação de Madeira em Salvador. Uma “menina de treze anos”, poetisa principiante, também lamentou as lutas que se seguiam: “Justos Céus, jamais se viu/ Entre irmãos, tão crua guerra”. Entre as que resolveram encarar o front, um dos casos mais notórios é o de Maria Quitéria de Jesus. Certo dia, um emissário patriota solicitou o apoio de seu pai, um velho fazendeiro do sertão. Ele se recusou a doar um dos seus 26 escravos ao exército. Maria ouviu a conversa e confessou à irmã que desejava ser homem para se juntar aos combatentes. A irmã emprestou-lhe roupas do marido e, disfarçada, Maria Quitéria foi para Cachoeira, onde assentou praça na artilharia (depois passou para um batalhão de infantaria). Acabou sendo descoberta pelo pai, mas já era tarde demais. Vários documentos registram sua participação em três combates, durante os quais usou fardamento adaptado com alguns toques femininos e “praticou proezas memoráveis”. Depois da batalha de Pirajá, ela teve seu reconhecimento como primeiro cadete. Em agosto de 1823 foi recebida pelo imperador, que lhe conferiu a insígnia de cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro e a graça do soldo de alferes – uma pensão vitalícia. Nas palavras do oficial-poeta Ladislau dos Santos Titara, aquela combatente era a “fervida amazona” e a “destemida Pentesileia”, rainha das amazonas da mitologia grega. Segundo o pai de Maria Quitéria, os escravos não tinham interesse em lutar pela independência do Brasil. Mas esse desejo da classe senhorial de manter inalterada a relação senhor-escravo não foi realizado. A fuga de cativos aumentou durante a guerra. O redator do Semanário Cívico, periódico leal às Cortes de Lisboa, teve de lidar com sete perdas, entre elas a de “uma negra engomadeira e costureira com um filho pequeno”. Em fevereiro de 1824, uma senhora ainda procurava “Maria Rita, crioula (...), que fugiu quando as tropas de Portugal se retiravam”. Escravos procuravam os acampamentos brasileiros e tentavam se alistar como soldados. Alguns assentaram praça, outros foram empregados em trabalhos braçais. Também havia o que fazer nos acampamentos para costureiras como a crioula Maria Rita, para cozinheiras e vendedoras de víveres, ocupações de muitas negras em tempo de paz. É bem provável que mais escravas, libertas e mulheres livres tenham entrado em combates, mas há pouquíssimos registros disso. Entre os 200 quilombolas supostamente incentivados por Madeira a atacar pontos brasileiros em Pirajá, em dezembro de 1822, possivelmente houvesse figuras femininas. A região tinha longa tradição de formação de quilombos e, em fevereiro daquele ano, houve denúncias de “numerosos ajuntamentos (...) de negros armados, e mulheres que se lhes agregavam”. O general Labatut não hesitou em fuzilar mais de 50 escravos presos depois do ataque e mandou açoitar os outros – talvez um indício de que poupasse a vida das mulheres. A tradição oral de Itaparica registra o papel da negra Maria Felipa de Oliveira na defesa da ilha contra o ataque português de janeiro de 1823. Ela teria liderado mais de 40 mulheres negras e índias. Não há documentação que comprove esses relatos, mas o cônsul britânico comentou sobre a vitória dos itaparicanos: “Diz-se que as mulheres participaram da ação, e incentivaram seus patrícios enquanto durava”. Ao fim da guerra as mulheres retomaram suas vidas. Como Ana Joaquina, muitas choravam a morte ou o desaparecimento de maridos e filhos. Viúvas solicitavam os soldos atrasados dos maridos. Escravas foragidas, como Maria Rita, procuravam a todo custo evitar seus donos. Maria Quitéria voltou à casa paterna, casou-se com um lavrador e levou uma vida recatada (por volta de 1843, depois da morte do marido, ela e uma filha se mudaram para Salvador). A memória da guerra pela Independência apagou o papel das mulheres. Embora Joana Angélica fosse lembrada como vítima da prepotência portuguesa, não há indício de que Maria Quitéria tenha sido celebrada em vida durante a festa anual do Dois de Julho, que comemora a vitória dos patriotas. Passou-se mais de um século antes que ela fosse consagrada heroína: em 1953 recebeu um monumento e em 1996 foi reconhecida como Patrono do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Mais recentemente, a história de Maria Felipe de Oliveira também foi resgatada da tradição oral e incorporada à comemoração do Dois de Julho. Nada mais justo: dentro ou fora do campo de batalha, as lutas pela Independência na Bahia também foram negras, femininas e populares. Hendrik Kraay é professor da Universidade de Calgary (Canadá) e autor de Política racial, Estado e forças armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850 (Hucitec, 2011). Saiba mais FARIAS, Eny Kleyde Vasconcelos de. Maria Felipa de Oliveira: heroína da Independência da Bahia. Salvador: Quarteto, 2010. SOUZA, Bernardino José de. Heroínas bahianas: Joanna Angelica, Maria Quitéria, Anna Nery, 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Paralelo Ltda., 1972. TAVARES, Luís Henrique Dias. A Independência do Brasil na Bahia. Salvador: Edufba, 2005. (http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/a-independencia-delas. Último acesso em 02/08/2015)

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