Uma Cruzada pelos mares

Em entrevista à RHBN, o pesquisador inglês Niguel Cliff fala sobre os significados da expedição de Vasco da Gama e associa os Descobrimentos à oposição entre Islã e cristianismo Alexandre Leitão 1/9/2012 As motivações e os significados da expedição de Vasco da Gama para as Índias são debatidos até hoje. Nesta breve entrevista, o pesquisador e crítico inglês Nigel Cliff, que lança no Brasil a tradução de seu livro Guerra Santa (Globo), associa os Descobrimentos à oposição entre Islã e cristianismo, e afirma que a viagem liderada pelo então obscuro português foi mais impactante que a de Colombo RH Por que é importante estudar Vasco da Gama? NC A história de Vasco da Gama é capaz de nos ensinar muito sobre nós mesmos e sobre nosso mundo. Uma busca levada a cabo por quase um século, e a um custo humano elevado, é colocada nas mãos de um jovem e sua tripulação estranhamente sortida. Eles navegam por 24.000 milhas rumo ao desconhecido, desafiados por tempestades, doenças e culturas hostis, e de alguma forma, embora não sem grande perda de vidas, conseguem voltar para casa. Sempre fui atraído por aquilo que o comportamento dos exploradores em contato com culturas desconhecidas revela sobre eles como indivíduos e, especialmente, sobre as sociedades de onde vieram. E, conforme pesquisava, cada vez mais eu via a viagem de Vasco da Gama como um momento decisivo da transição entre os mundos que chamamos de medieval e moderno – isto é, entre a era em que o Islã ocupava o lugar de potência dominante e a era da ascendência do Ocidente. Agora que o mundo está voltando em direção ao Oriente – e com a velha disputa entre cristianismo e islamismo mais uma vez mostrando os dentes –, senti que era hora de trazer esta história fabulosa para um público mais amplo. RH Qual é a relação da luta entre Islã e cristianismo com os Descobrimentos? NC As palavras dos exploradores, de seus reis e dos papas que os apoiaram sugerem que os Descobrimentos eram, de certa forma, uma continuação das Cruzadas. Na verdade, as chamadas Cruzadas nunca pararam; o que mudou foi a disposição das potências europeias para arriscar uma provável derrota e humilhação no Oriente. A ideia de adentrar o Mar Vermelho e o Oceano Índico não era nova; o que distingue os portugueses foi o fato de eles terem encontrado uma maneira de chegar ao Oriente navegando por todo o caminho em volta da África. RH Que motivações impulsionaram as Grandes Navegações? NC No âmbito pessoal, o desejo de riqueza e sucesso continuava sendo um motivo poderoso, como também tinha sido ao longo das Cruzadas. Cada monarca, cortesão, capitão e marinheiro tinha seus próprios interesses. Mas o ethos religioso das Cruzadas, enraizado nos europeus durante séculos, e em particular nos portugueses e espanhóis, foi uma característica marcante dos Descobrimentos. Em Portugal – talvez com a exceção dos nobres, que pensavam que todo o empreendimento era uma loucura real –, a maioria das pessoas achou que a perspectiva de apreender a riqueza dos infiéis era tão agradável a Deus quanto rentável à nação portuguesa. RH Mitos como o reino de Preste João tiveram algum impacto no incentivo às navegações? NC Sabemos que ignorância e otimismo eram tão importantes quanto o conhecimento real na condução dos Descobrimentos. Preste João foi a maior dessas manifestações de otimismo: um rei cristão perdido que governava um reino mágico oriental. Para a cristandade ocidental, Preste João era um aliado. Os portugueses fizeram o seu caminho ao longo da costa oeste da África e pelo Oceano Índico indagando constantemente por ele. Podemos nos perguntar se, sem a esperança de encontrar um poderoso aliado para apoiar seu avanço, os portugueses teriam ousado ir sozinhos para a Índia. RH A viagem de Vasco da Gama foi tão importante quanto a de Colombo? NC Vasco da Gama conseguiu fazer o que Colombo tentou e não conseguiu – encontrar o caminho marítimo para a Ásia. As especiarias, pedras preciosas, sedas e porcelanas da Índia e da China eram uma fonte importante de riqueza que agora rumava para a Europa. Cabe lembrar que a América ainda era vista como pouco mais do que um obstáculo no caminho para o Oriente. A Europa não tinha necessidade de terras, e sim de riquezas e da confiança de que poderia romper suas amarras e expandir seus horizontes, afirmando-se no cenário mundial após ter sido por tanto tempo constrita pelo mundo islâmico. RH Como Vasco da Gama, figura pouco conhecida na Corte, acabou escolhido para comandar a primeira missão naval? NC Esse é um dos pequenos mistérios da História. Ele era filho de um nobre menor, e era suficientemente obscuro para que não se concordasse com sua escolha. Talvez ele demonstrado as qualidades necessárias ao comandante da grande missão: ser um capitão capaz de controlar e inspirar seus homens; um diplomata capaz de negociar com os reis, e, se necessário, um líder de guerra capaz de travar uma implacável Cruzada. Mas talvez não houvesse muitos notáveis ??portugueses dispostos a assumir uma missão com grande probabilidade de acabar em fracasso e morte. RH Como os europeus reagiram ao encontro com as civilizações asiáticas? NC O impacto foi limitado pela profunda fé religiosa que levaram com eles. Em vez de se envolverem com as antigas sociedades às quais haviam chegado, tenderam a tratá-las como inferiores e dispensáveis. RH Qual o legado de Vasco da Gama para o mundo? NC Ele disparou o tiro de largada para os longos e tensos séculos do colonialismo ocidental na África e na Ásia – e o sucesso da Cruzada global conhecida como a Era dos Descobrimentos permitiu ao Ocidente cristão cercar o mundo islâmico e navegar rumo à dominação global. Os tremores desta súbita e inesperada revolução, desencadeada pelos portugueses há cinco séculos, são sentidos ainda hoje. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/entrevista-com-nigel-cliff. último acesso em 14/10/2012

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