Desintegração sobre rodas - Revista de História
03/12/13
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Para economizar, o governo privilegiou a circulação de ônibus nas cidades
brasileiras. Mas o barato saiu caro
Aline Salgado
1/11/2013
Foto: Agência Brasil
A manchete estampada no
Jornal do Brasil do dia 23 de
maio de 1959 assusta. Era
uma guerra civil? Um ataque
inimigo? Não. O motivo da
mobilização do Exército era
algo mais cotidiano, mas que
causa o mesmo sofrimento:
controlar o resultado de um
levante popular, fruto do
descaso de anos de péssimos
serviços de transportes
públicos. A edição trazia
detalhes do protesto ocorrido
um dia antes, quando a
população, revoltada com o
serviço hidroviário, até então o único sistema que ligava a cidade de Niterói ao Rio de Janeiro,
depredou e incendiou a estação e a residência da família que administrava o serviço. O episódio
deixou seis mortos, 118 feridos e marcou na história a crise da mobilidade urbana nos grandes
centros do país.
Esse não foi o primeiro nem foi o último caso de reclamação contra os péssimos serviços de
transporte urbano, como bem o demonstram os protestos deste ano. “Não é à toa que naquele
momento, como agora, o planejamento urbano tenha se apresentado como o remédio para os
males de que padecia – e ainda padece – a cidade”, avalia o historiador da PUC-Rio e especialista
na história carioca, Rafael Lima.
Segundo o professor, tradicionalmente o nosso sistema de transporte sempre ficou a desejar em
termos de segurança, comodidade e, sobretudo, eficiência. “Já se foram o bonde e o lotação
(espécie de tataravô das vans atuais) e, hoje, fica cada vez mais patente que o ônibus não dá
conta de exercer o papel de principal modal de transporte de massa. No Rio de Janeiro, o
transporte ferroviário, que poderia ser uma excelente alternativa, está abaixo da crítica e
humilha seus passageiros, a tal ponto que revoltas e depredações das composições são comuns”,
analisa.
A pressa de se buscar a integração nacional privilegiando o modal rodoviário, iniciado na década
de 1950 pelo presidente Juscelino Kubitschek e aprofundado pela ditadura civil-militar como
solução para a integração nacional, é visto por historiadores, e também por arquitetos e
engenheiros de Transportes, como uma das principais causas para o nó na mobilidade urbana a
que assistimos hoje nas grandes cidades.
“Optamos pelo modal mais barato, mas não o mais eficiente. O sistema ferroviário é dez vezes
mais caro que o rodoviário, por isso a escolha histórica pelas estradas e pelos automóveis em
detrimento dos trilhos”, explica o professor do Ibmec-Rio, Altair Ferreira Filho.
Hoje, o trem, que teve sua morte decretada em ritmo lento há cerca de 40 anos, volta à cena
contemporânea por trás de modernas tecnologias: monotrilho, Veículo Leve sobre Trilhos (VLT),
Trem Bala, além do conhecido metrô. Uma renovada, porém já conhecida solução para o fim do
estresse urbano e diário dos 165 milhões brasileiros que moram nos grandes centros.
Mas por que aquilo que hoje nos parece ser tão claro não foi pensado antes? Como chegamos a
esse estado de colapso nos transportes de massa? Para se entenderem os erros cometidos, é
preciso voltar no tempo e repensar as influências culturais que dominaram o Brasil ainda no início
do século XX – é o que propõe o professor do Departamento de História da UFF, Cezar Honorato.
“Muito antes de JK, quando houve a expansão do modal rodoviário, a tendência de se priorizar o
modelo automobilístico começa a surgir no Brasil na virada da década de 20 para a de 30. É
nesse período que começam a entrar no país conceitos de urbanismo da Escola Americana de
Chicago. Um momento em que saíamos da forte influência francesa e alemã para sermos
invadidos pelo ideologismo urbanístico dos norte-americanos”, explica.
Não é à toa que o conceito de vias principais e artérias nas cidades começa a se materializar nos
anos 30. É nesse bojo que surgem as primeiras autoestradas no Rio de Janeiro, como a Avenida
Presidente Vargas, no Centro da cidade, e a Avenida Brasil, aberta por Getúlio. “É também nas
décadas de 50, 60 e 70 que todo um sistema de mobilidade e planejamento urbano baseado no
‘rodoviarismo’ se torna cerne das políticas dos governos do Rio, ex-capital federal e cidademodelo
para o restante do país, como Brasília, São Paulo, Recife e Salvador, que seguiram os
mesmos paradigmas e hoje acumulam as mesmas crises”, avalia Cezar Honorato.
Segundo o pesquisador, o transporte público de massa também é pensado pelos governantes
nesse período, mas sempre como um segundo plano em meio aos extensos projetos de viadutos
e vias expressas. Já na década de 1970, com o aumento da produção do petróleo nacional, o
incentivo ao transporte sobre duas rodas, em especial o automóvel, ganha prioridade federal. O
paralelo com os dias atuais é quase natural para o engenheiro e professor da PUC-Rio José
Eugênio Leal.
“Para enfrentar a sombra da crise internacional, o governo – como fez em períodos anteriores –
reduziu este ano os encargos para as empresas automobilísticas e estimulou a compra de
automóveis. Além disso, temos o petróleo que, com os achados na camada pré-sal, ganhou
prioridade nas políticas do governo”, analisa o especialista, que tece críticas à manutenção do
atual modelo de desenvolvimento. “Incentivamos os carros num momento em que o mundo fala
de energia limpa. Faltam ao Brasil projetos de mobilidade urbana suficientes, que pensem o
transporte coletivo. Além, é claro, de uma regulação mais forte das concessões à iniciativa
privada”, aponta Leal.
No entanto, antes de o asfalto se sobrepor aos trilhos, os bondes tinham a função de comunicar
a cidade. No fim do século XIX e início do XX, companhias como a Botanical Garden Rairoad,
Carril de São Cristóvão e Ferro-Carril Vila Isabel cobriam as principais linhas de bonde elétrico do
Rio de Janeiro. Era o capital privado já explorando o transporte de massa. A única empresa
administrada pelo governo, a Companhia de Transportes Coletivos (CTC), ficava restrita a cobrir
itinerários que pouco interessavam aos investidores particulares.
Do controle dos bondes para os ônibus bastou um passo. As mesmas empresas que exploravam o
serviço sobre trilhos passaram a administrar o transporte sobre rodas. Uma transição quase
natural, como explica o historiador Rafael Lima. “No início dos anos 20 foi entregue a então
Light and Power a concessão de todas as linhas de bondes da capital federal. A companhia inglesa
assumiu a modernização dos bondes, que passaram a ser elétricos e, assim, monopolizou o setor.
Já nos anos 30, os bondes começam a ficar ultrapassados e os ônibus surgem, também no
mesmo esquema de concessão para o capital privado”, destaca.
Enquanto isso, os trens sofreram um processo de adaptação, passando para as mãos do governo
e transportando não mais cargas e sim operários. “Vargas estatiza os trens em função da
falência das empresas privadas, que exploravam o serviço”, resume Cezar Honorato, que explica
que os empresários, porém, ainda continuavam a pagar o salário dos trabalhadores e o
transporte dos funcionários. Daí, eles pressionavam para que o governo não aumentasse as
tarifas do trem porque, assim, seriam obrigados a aumentar os salários dos operários, reduzindo
suas margens de lucro e fazendo crescer os custos da produção. “Todo esse processo, agravado
pela má gestão do serviço, culmina no sucateamento e na falência do modelo já nos anos 70.
Mas o monopólio pela iniciativa privada volta na década de 1990 com as privatizações e a ideia
de que a melhoria do serviço só seria possível estando nas mãos das empresas.”
Mesmo com novas estruturas, modelos e nomes, o que se vê hoje é o serviço de transportes
urbanos no país perdurar como uma atribuição das empresas privadas. Da mesma forma que a
Revolta das Barcas, o descontentamento com este modelo continua sendo alvo de queixas, o que
aconteceu em junho deste ano, quando o povo foi às ruas das principais capitais do país gritar
por melhorias. Na multiplicidade de opiniões que surgiram nas manifestações pode estar o
caminho para um bem-estar urbano mais duradouro nas cidades.
“Toda mudança depende de muita negociação. Mas, além do debate, para que se mude um
modelo, é preciso que ele experimente uma crise. Estamos assistindo a capítulos desse
enfrentamento social. É preciso, no entanto, que se construa uma coalizão das cidades em torno
de um novo modelo e que essa alternativa consiga enfrentar todos os conflitos que virão dessa
transição”, é o que prevê o coordenador do Observatório das Metrópoles, do Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. Vamos torcer para que a resposta ao
pedido das ruas venha mais rápido do que a espera por um ônibus.
www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/desintegracao-sobre-rodas. Último acesso em 03/12/13
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